terça-feira, 17 de novembro de 2009

Flores em vida


Numa de suas muitas canções repletas de singela sabedoria, Nelson Cavaquinho recusava de forma categórica homenagens póstumas. E pedia: “Me dê as flores em vida, um carinho, a mão amiga, para aliviar meus ais. Depois que eu me chamar saudade, não preciso de vaidade, quero preces e nada mais”. Lembrei dessa canção de Cavaquinho ao rever ontem à noite os minutos finais de Buena Vista Social Club, filme que recupera do oblívio um grupo de artistas de talento e trajetória singulares. É comovente observar aqueles velhinhos cubanos alcançando a glória tardia no Carnegie Hall, em Nova York, após décadas de ostracismo e subempregos, durante as quais guardaram em suas mentes e gavetas um apogeu perdido.
Vê-los ali tocando, se divertindo e se emocionando nos faz pensar na montanha russa que os arrebatou num período de suas vidas em que já se preparavam para deixar o mundo anonimamente, com a cabeça no travesseiro e o terno surrado devidamente engomado. É fato que Ibrahim Ferrer, Ruben González, Compay Segundo e Pio Leyva, entre outros dos quais não me recordo os nomes, já estão mortos. Mas é fato, também, que ao contrário da maioria de nós, anônimos errantes deste planeta, eles receberam as flores em vida. Basta prestar atenção no semblante silencioso de Ibrahim Ferrer, ao contemplar profundamente comovido a platéia do Carnegie Hall, para vislumbrar ali uma epifania, e provavelmente uma valorosa sensação de missão cumprida.
É bem provável que, se não fosse por iniciativa de Wim Wenders e Ry Cooder, todos eles teriam permanecido obscuros, lembrados apenas por alguns sobreviventes de uma geração que conheceu a Cuba pré-revolucionária, com suas casas de espetáculos, cassinos e clubes de bailes. É como se tivessem vivido todo esse tempo apenas aguardando inconscientemente a chegada de Cooder e seu filho à ilha, como uma tumba egípcia (a comparação é de mau gosto, reconheço, mas adequada neste caso) escondida numa pirâmide aguarda milênios a chegada de um arqueólogo. Um acaso monumental em suma, que permitiu a eles imprimir, merecidamente, as digitais na máquina do mundo. O resultado desse acaso é que hoje você se depara com o rosto sorridente e maroto de Compay em qualquer megastore que se preze, assim como encontra milhares de referências a Ferrer no Google ou pode baixar discos de González em sites de compartilhamento de arquivos.
E agora, enquanto penso nos velhinhos do Buena Vista, acabo pensando também nos artistas sem nome – homens e mulheres, vivos ou mortos – que não conseguiram ser pinçados da massa amorfa que compõe a escória humana. Por que uns e não outros? Não duvido que para cada Compay Segundo ou Ibrahim Ferrer há muitos tipos igualmente talentosos perambulando por vielas de cidades como Havana, Kinshasa, Lisboa, Pequim ou Rio de Janeiro. E então volto a pensar em Cavaquinho, que morreu pobre e bêbado, mas famoso. E também em Cartola, redescoberto já velho enquanto trabalhava como um improvável flanelinha no centro do Rio. Enfim, fico aqui pensando em toda essa gente que, por um espasmo do destino, alcançou a eternidade a despeito de todo e qualquer prognóstico contrário.

Um comentário:

Augusto Fernandes Sales disse...

Minha visão sobre os tiozões em:

http://gatosmucky.blogspot.com/2010/09/musica-de-tiozinho-literalmente.html

Abraço.