quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Afeto tortuoso


Até que ponto nos desnudamos quando reproduzimos em palavras nossas experiências pessoais? Até onde se estende a realidade e se inicia a mistificação? Que fronteira jamais deve ser transposta? Sabemos que a sinceridade e a veracidade nem sempre são o forte dos textos memorialísticos, até porque selecionamos naturalmente certas passagens e deixamos outras no limbo, em muitos casos inconscientemente. Dito tudo isso, me impressionou a franqueza sem meio termo do francês Jean-Louis Fournier, um diretor de programas de TV que escreveu um livro – intitulado Aonde a Gente Vai, Papai? – sobre a relação com seus dois filhos, ambos deficientes mentais. Não li o livro, apenas trechos reproduzidos pelo repórter Geneton Moraes Neto em seu excelente blog. Mas foi o suficiente para me defrontar com sentimentos dilacerantes, que reviram pelo avesso noções preconcebidas de compaixão, amor paterno, abnegação e muitas outras questões essenciais para um pai. Pelo que li, Fournier sempre optara pelo silêncio quando o assunto eram os meninos Mathieu e Thomas, até resolver escrever o livro após a morte de um deles (ambos atingiram a idade adulta e o outro filho vive numa casa de repouso). Ao que parece, ele não respeitou fronteiras morais preestabelecidas ou se deixou guiar pelos limites da própria consciência. Foi fundo, talvez o mais fundo que pode ir um pai de filhos deficientes. Reproduzo a seguir alguns trechos, retirados do blog de Geneton, que também entrevistou Fournier:

“Quando estou sozinho no carro com Thomas e Mathieu, passam-me às vezes pela cabeça ideias estranhas. Penso que se sofresse um grave acidente de carro talvez fosse melhor. Estou ficando cada vez mais insuportável de conviver – e as crianças crescem e ficam cada vez mais difíceis. Então, fecho os olhos e acelero – mantendo-os fechados o maior tempo possível”.

“Queríamos poder tê-lo defendido da sorte que se havia agarrado a ele. O mais terrível é que não podíamos fazer nada. Não podíamos sequer consolá-lo, dizer-lhe que o amávamos assim como era – tinham-nos dito que ele era mudo. Quando penso que sou o autor dos dias dele, dos dias terríveis que ele passou na Terra, que fui eu quem o fez vir, tenho vontade de lhe pedir desculpas”.

“Aqueles que nunca tiveram medo de ter um filho que não fosse normal que levantem a mão. Ninguém levantou. Todo mundo pensa nisso como pensa num terremoto, como pensa no fim do mundo – algo que só acontece uma vez. Eu tive dois fins do mundo”.

“Não tive sorte. Joguei na loteria genética, perdi”.

São palavras duras, as de Fournier. Mas nem por isso despidas de afeto, por mais tortuosa que seja a manifestação desse afeto. Quem poderia julgá-lo? Julgar seus atos, sua franqueza, sua frieza? Não tenho um filho com doença mental. Imagino que deva ser um fardo, ainda que seja possível carregá-lo. Fournier apenas nos desvela as dimensões, o peso e a textura desse fardo, assim como faz Cristóvão Tezza em outro livro pungente, O Filho Eterno, que reconstitui com elementos de ficção a relação com o filho portador de Síndrome de Down. Mas me parece, pelo menos a princípio (já que não li o livro de Fournier), que nem Tezza foi tão fundo, mesmo porque há uma grande ternura nos momentos finais do seu romance, os dois, pai e filho, no estádio torcendo pelo Atlético Paranaense. De qualquer modo, em ambos os casos vemos pais lutando para reprimir a amargura, mitigar o desalento, encontrar atenuantes que tornem suportável o ato de continuar vivendo. Ter um filho doente é como sofrer uma perda ao contrário, uma espécie de morte invertida. Afinal você não perde alguém, e sim ganha alguém, só que esse alguém é indesejado. Por mais que rumine sobre tudo isso, permaneço num estado de pasmo, de letargia, como se fosse impossível – e realmente é – apreender em sua totalidade os sentimentos envolvidos em histórias de vida tão dolorosas.

Nenhum comentário: