segunda-feira, 10 de maio de 2010

Pátria invulnerável





De tempos em tempos, volto aos lugares da minha infância. Faço um pequeno périplo pelos bairros do Barbalho, de Nazaré, da Soledade, da Lapinha. Lugares hoje meio decrépitos, assombrados pela decadência e escurecidos pela fuligem que vem da fumaça dos ônibus. Procuro, no Lanat, a casa onde passei a minha aurora soturna em meio a livros e bonequinhos de plástico. Ela está lá. Bem diferente, reformada e tomada por um muro alto, mas ainda lá. Vasculho na memória os tímidos registros da minha primeira escola, da igreja que detestava freqüentar e da casa do meu avô, com seus sabiás, pássaros-pretos e lindas velharias lusitanas. Também estão todas ainda lá, de pé. Posso me deter por uns instantes e percorrê-las com os olhos, antes de voltar para a realidade de uma outra Salvador, aquela na qual vivo e trabalho. Poderia até, caso desejasse, pedir aos donos atuais desses lugares para entrar um pouco e tomar um café, mesmo correndo o risco de ter as minhas reminiscências devassadas.

Pensei muito nos meus primeiros anos, e em como eles ainda estão impregnados em mim, depois de ler o comovente relato de uma amiga que não tem como voltar fisicamente aos lugares da sua infância – embora os mantenha inviolados na memória, que é o que realmente importa. Ela nasceu na velha Canudos, a mítica cidade onde, em 1897, o exército republicano brasileiro dizimou os seguidores de Antonio Conselheiro. Eternizada por Euclides da Cunha em Os Sertões (e também por Mario Vargas Llosa em A Guerra do Fim do Mundo e Sándor Márai em Veredicto em Canudos), a pequena cidade do árido nordeste baiano voltou a ser dizimada nos anos 60, desaparecendo sob as águas de uma barragem. Não apenas a cidade submergiu. Foi embora com ela a memória coletiva de um povo. Segundo minha amiga, muitos habitantes só saíram quando as águas começaram a preencher as ruas de terra batida, transformando a cidade numa improvável Veneza do semi-árido. E o pai dela, antes de tudo um forte, chorou pela única vez na vida naquele momento.

De vez em quando, em tempos de seca, a água da barragem baixa e é possível ver os escombros da cidade velha, como ossos desgarrados de um corpo insepulto. Mas, para minha amiga, é bem provável que a verdadeira Canudos não esteja ali. Não, a pátria invulnerável de sua infância feliz – para usar as palavras de Juan Gelman que ela cita em seu relato – está devidamente arquivada nas prateleiras da sua mente: o sino da igreja, a casa onde ela nasceu, a casa dos seus avós, o “campo de bola”, o barracão, as balas da batalha perdida que ela e outras crianças tiravam do solo para dar aos visitantes. Está tudo lá, e talvez seja até melhor que ela não possa revisitar fisicamente o próprio passado, revolvê-lo com as mãos, senti-lo sob os pés. Afinal, como alguém já disse, nunca devemos voltar ao lugar onde fomos muito felizes.

7 comentários:

Socorro disse...

Pois eu volto sempre à Canudos da mnha infância.Impressionante como ela se mantém intacta na minha memória. E isso me faz muito bem. Porque me lembra que é de lá a minha essência. Sabe aquela piada que a pessoa sai do mato, mas o continua dentro dela? É verdade comigo. Canudos continua em mim. E se é verdade que qundo morremos vamos pra algum lugar que onstruímos na nossa imginação, é pra lá que eu vou...

Claudia Pedreira disse...

Muito lindo, Paulinho. Eu, filha de oficial de exército, deixei lugares e pessoas que provavelmente nunca vou saber reencontrar. Mas estão todos vivos na memória. Este texto eu também vou guardar em algum cantinho...

Paulo Sales disse...

Socorrinho e Claudinha
A memória é mais forte do que a distância, o tempo, o cimento e a água. É o que nos faz diferentes.
Um beijo nas duas.

Carini disse...

Paulo,
Acabei de ter o mesmo sentimento de quando assisti ao filme Cinema Paradiso, saudades.
Um filme gravado na minha memória da infância na Pituba com ruas não asfaltadas, de São Gonçalo dos Campos.
Sim, A memória é mais forte do que a distância, o tempo, o cimento e a água. Será que precisamos ser lembrado para não apagar essas memórias?
Gosto de ler seus textos.
bjos

Paulo Sales disse...

Obrigado, Carini, e bem-vinda ao blog.
Cinema Paradiso produz um travo de amargura, do tempo que se foi e que é impossível ter de volta, apalpar, sentir sob os pés. De qualquer modo, poder guardar tudo que a gente viveu é melhor do que o esquecimento.
Um beijo.

Marcos disse...

Essa galera do Barbalho q estudou no Sale tem um quê de gênio impressionante! rs

Falando serio agora, qnd vi a imagem me lembrei dessa tragédia da enchente q devastou boa parte de Alagoas e Pernambuco. Triste ver cidades inteiras destruídas e pessoas q já não tem muita coisa ter q começar tudo do zero.

Com ctz foi o pior São Joao da história desse povo forte q é o nordestino.

Paulo Sales disse...

Você, como um bom representante do semi-árido, que o diga. As imagens me impressionaram, o número de mortos também. Acho que perder tudo é terrível, mas perder um filho numa tragédia assim é muito, muito pior. Até falo sobre isso em um texto aqui no blog, que tem uma foto de Nelson Freire. Quando puder, dê uma lida.
abração