quinta-feira, 29 de julho de 2010

Alumbramento


Com a ajuda da internet, eu pude ter de volta, 34 anos depois, um alumbramento que me marcou a infância. Estou me referindo a uma cena da novela Saramandaia, escrita por Dias Gomes e exibida na Rede Globo em 1976. Era uma novela impregnada do realismo fantástico latino-americano, movimento literário que naquela época ganhava o mundo, consagrando nomes como Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Jorge Luís Borges e Juan Rulfo. Nela, tudo era possível, inclusive a existência de personagens como uma mulher muito gorda que explodia no final, um sujeito sorumbático que virava lobisomem, outro que comia formigas e outro ainda que expelia o coração pela boca. Mas havia um personagem que fascinava minha imaginação de criança: João Gibão, vivido por Juca de Oliveira, que ao final da novela voa pelo vilarejo sorrindo, com asas enormes nos ombros, enquanto a cidade pára para observá-lo. Foi esse vôo, embalado pela canção Pavão Mysteriozo, de Ednardo, que provocou naquele garoto de seis anos um alumbramento até hoje presente com impressionante nitidez.

Ao entrar com a palavra-chave Saramandaia no youtube, encontrei essa e muitas outras cenas e revi todas. A maioria difere bastante dos vídeos em baixíssima resolução que tinha guardados no disco rígido do meu cérebro – sobretudo a da transformação de Ary Fontoura em lobisomem. Mas a do vôo de João Gibão é curiosamente próxima daquela revelação que me foi dada há tanto tempo. Sei que devo ter visto essa cena outras vezes, nos anos seguintes, em programas do tipo Vídeo Show. Mas mesmo assim a semelhança me impressionou. E novamente me emocionou muito. Afinal, ver um homem realizar o sonho primevo de voar é algo que toca fundo a nossa alma. Falar em liberdade talvez seja se restringir à camada mais superficial de sentimentos, pois a cena evoca muito mais: a descoberta de um universo paralelo longe da mesmice e das limitações físicas, a melancolia por saber que não há mais volta, apenas um ir contínuo para bem distante do que se foi um dia.

A permanência dessas imagens de Saramandaia em minha memória talvez se dê porque, de certa forma, elas serviram de alicerce visual para as histórias que mais tarde, já adolescente, eu encontraria nos livros de García Márquez. Há muito de João Gibão em Um Senhor Muito Velho com umas Asas Enormes. E também em O afogado mais Bonito do Mundo. E em todos aqueles personagens meio etéreos de Cem Anos de Solidão. Os livros de García Márquez, assim como Saramandaia, deixaram tatuada em mim uma forma muito peculiar de observar o mundo, impregnada de uma abstração que ainda hoje me acompanha. E o melhor: eles serviram de base para que mais tarde eu me encontrasse com a fantasia esteticamente mais elaborada e intelectualizada de Borges. Como se subisse uma escada e fosse acumulando sons, imagens e pensamentos a cada degrau. Não deixa de ser uma metáfora interessante para a vida.

8 comentários:

Chico Salles disse...

Beleza, Paulo Sales, belo texto. Abraço
Chico

Paulo Sales disse...

Obrigado, meu brother.
abs

Karla disse...

Muito bom isso: ".... a melancolia por saber que não há mais volta, apenas um ir contínuo para bem distante do que se foi um dia."

Tomara, sempre, que tudo que vem pela frente seja muito melhor, né?

Sempre leio o seu blog, Paulo. Gosto muito! Hoje não tive como não deixar um comentário. rs

Bjs,
Karla

Paulo Sales disse...

Oi, Karla
Muito obrigado pelas visitas e pelo comentário. Tomara mesmo, mas nem sempre as coisas acontecem como a gente espera, né? O jeito é se adequando ao que aparece.
Um beijo

Ricardo Ballarine disse...

Cara, coincidentemente, estava lendo uma reportagem no NYT sobre isso, a internet significa o fim do esquecimento. Vai o link: http://www.nytimes.com/2010/07/25/magazine/25privacy-t2.html?_r=4&pagewanted=1&ref=magazine

Até

Paulo Sales disse...

Não consegui acessar o link, mas o conceito de fim do esquecimento é interessante. Outro dia também escrevi sobre a possível imortalidade do que escrevemos aqui, em blogs e outras ferramentas da internet. Pode ser que esses textos fiquem pairando por aí muito tempo depois de termos ido.
abs

Anônimo disse...

nao assisti saramandaia, mas esta cena me lembrou muito uma que marcou minha infancia, que eh a de icaro voando com asas que nem estas no sitio do pica pau amarelo. tb fiquei fascinado na epoca.

Paulo Sales disse...

O Sítio faz parte da memória afetiva de mais de uma geracão, Moreno. E Ícaro é um mito fortíssimo. Adorava a série, via todas as tardes.
Abs