terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Odisséia


Outro dia,  enquanto cortava o cabelo num salão e folheava uma edição antiga da revista Veja, eu li uma matéria sobre os preparativos que estão sendo feitos para a primeira viagem tripulada a Marte. E descobri que um grupo de cientistas cogita um projeto à primeira vista descabido, mas que após alguns minutos de reflexão se revelou plausível: como a viagem de ida ao planeta mais próximo da Terra duraria em torno de cinco meses e a volta é ainda uma incógnita, eles defendem que os astronautas poderiam ser os primeiros colonizadores de Marte e, caso concordassem, ficariam lá para sempre.

Sim, passariam o resto de suas vidas naquele ambiente ameaçador de ar irrespirável, com aquela paisagem monótona de pedras e céu avermelhado. Não veriam mais o lugar em que nasceram. Não apenas o bairro ou a cidade, mas também o país, o continente e, por fim, o planeta. Não veriam mais os oceanos, o céu azul, o verde, os animais, a família, os amigos. Dariam as costas para tudo isso para cravarem seus nomes no célebre panteão dos grandes desbravadores. Foi aí, quando o autor do texto fez essa comparação entre esses astronautas e os navegadores do passado, que me dei conta de que toda essa odisséia no espaço pode sim se concretizar. Afinal, já existem precedentes na história da civilização.

Numa época em que acessamos qualquer lugar do mundo com o auxílio do Google Earth, não é fácil imaginar o que representaram para a humanidade as grandes navegações. Muitos homens se lançaram no oceano numa época em que existia apenas a Europa e uma parte da Ásia e da África. Do lado de lá do ponto mais avançado do continente – o Cabo da Roca, em Portugal – enxergava-se apenas o infinito. E ele era apavorante. Américo Vespúcio  chegou à América e seu nome batizou o novo mundo, mas ele imaginou que se tratava do continente asiático. Ou seja: ignorava a existência de toda aquela extensão de terra que vai da Groelândia à Terra do Fogo e, por trás dela, o maior dos oceanos, o Pacífico. Enfim, havia mais coisas entre a Europa e o resto do mundo do que supunha nossa vã filosofia. 

Quando criança, li com avidez um livrinho que contava a saga do navegador Fernão de Magalhães, cuja esquadra foi a primeira a dar a volta ao mundo. Partiram mais de 500 homens em cinco naus. Voltaram pouco mais de 30, se a memória não me falha, amontoados, doentes e famintos na menor de todas as caravelas. Magalhães ficou pelo caminho, ao morrer combatendo povos indígenas que tentava subjugar em algum canto do globo. O fato é que descobrir mundos desconhecidos, lá pelos idos de 1400 ou 1500, era quase tão assustador e irreal quanto uma viagem a Marte, com a diferença de que hoje sabemos a distância exata, o trajeto a ser feito e até a paisagem que será encontrada quando desembarcarmos por lá.

Mas a idéia do exílio voluntário eterno me intriga e de certa forma me fascina. A matéria dizia que, com a brutal diferença de gravidade entre os dois planetas e a rotina estafante por lá, a expectativa de vida dos astronautas colonizadores seria de apenas 10 anos. Como alguém poderia em estado de plena lucidez tomar uma decisão como essa? A idéia, segundo os cientistas, seria criar uma colônia de humanos em Marte: eles criariam hortas, estudariam maneiras de extrair a água do subsolo e, caso tudo desse certo, procriariam. Teríamos, assim, os primeiros bebês nascidos em solo marciano – em que condições é impossível dizer. Com a passagem das décadas ou dos séculos e com a Terra exaurida, poderíamos – os mais afortunados – nos mudar para lá, deixando para trás o caos institucionalizado.

Mas… como lidar com a saudade? Penso no banzo que acometia os escravos saudosos, uma dor íntima e silenciosa por saber que nunca voltariam e teriam que seguir em frente em terra estranha, sob o jugo de gente hostil. Aos terráqueos solitários restaria apenas olhar o céu. Ali, em algum ponto do universo, repousaria uma estrela quase igual às outras, como é Marte quando a observamos daqui. É distância demais para um coração, por mais duro e impenetrável que seja. 


Todas essas especulações são apenas (ao menos por enquanto) delírio visionário. Mas foi o delírio posto em prática que permitiu à humanidade avançar – e em alguns casos retroceder. Seria, de todo modo, uma maneira de a espécie humana responder a um dos questionamentos primordiais que nós, como indivíduos, sempre nos fizemos, invariavelmente sem encontrar a resposta: para onde vamos? 

6 comentários:

Anônimo disse...

Querido Paulo Sales,
Brilhante reflexão!
Fiquei intrigado com todas as questões levantadas, principalmente entendendo que os desafios atuais podem de fato serem " menores" que os desbravadores do passado!!
Gostei Muito!
Abs
Deco

Paulo Sales disse...

Valeu, Decão. Seja bem-vindo ao blog. Hoje os riscos são mais calculados, mas nem por isso menores.
Grande abraço,
P.

Armundo disse...

E o nome dessa colônia pioneira certamente será Ray Bradbury. Em "Crônicas Marcianas", ele inventa uma estória de colonização de Marte, tendo, segundo alguns críticos, a colonização americana como modelo, e os consequentes massacres das populações nativas, o que não exclui algum romantismo, tanto na vida real como na ficção.

Lá pelas tantas, os já estabelecidos terráqueos-marcianos (os marcianos marcianos-mesmo já haviam ido pro saco) vêem no espaço e recebem notícias de uma conflagração nuclear na Terra. Ora, bate de volta aquele troço que você explicou tão bem e todo mundo se manda de volta.

Mas alguns fazem o caminho inverso - vêm (olha o ponto de vista) para Marte, tipo pensando "aqui não tem jeito mesmo".

Chegando no novo planeta, a família passeando, o filho pergunta pro pai:

"Pai, onde estão os marcianos"?

O pai responde: "Eles estão aqui", aponta os rostos deles espelhados numa poça d'água.

Desculpem a simplificação, é mais ou menos assim.

Quantas coisas nos reserva o futuro? Quantas impossibilidades serão banalizadas? Fazemos essas perguntas hoje como alguns fizeram no passado remoto.

Paulo Sales disse...

Caro Armundo, mais uma vez obrigado pela participação aqui no blog.
Nunca li Ray Bradbury, mas já li sobre ele e me parece um autor interessante. Gostei da cena que você descreve. E quanto às nossas dúvidas, elas continuam gigantescas, afinal, ainda vivemos no princípio do mundo. Quem sabe uma máquina do tempo não venha nos redimir, para citar outro grande da ficção científica, H. G. Wells.
Grande abraço.

Karla disse...

Paulinho, maravilhoso esse seu texto! E deu vontade de oferecer essa viagem sem volta pra muita gente.....rsrsrs Que besteira, meu Deus! Desconsidere essa parte do meu comentário. rsrsrs
Beijos,

Paulo Sales disse...

Oi, Karla
Que desconsiderar que nada!! Tem muita gente que podia estar em Marte agora, quem sabe a Terra ficasse um pouco melhor. E mais uma vez obrigado pela presença e pelos comentários aqui no blog.
Um beijo.