sexta-feira, 8 de abril de 2011

Chuva forte


Hoje baixei meio que por acaso um disco de Joan Baez. Procurava uma canção de Bob Dylan chamada Farewell, que não ouço há pelo menos uns 15 anos. Não encontrei. Mas achei um disco de mesmo nome, gravado por sua namorada lá nos paleolíticos anos 60. E o escuto agora pela segunda vez seguida, neste fim de noite que encerra um dia triste. Não deve existir nada mais fora de moda do que ouvir Joan Baez em abril de 2011, assim como não há nada mais fora de moda do que defender a dignidade do ser humano ou o anseio por um mundo menos desigual, como ela defendia quando gravou o disco. Devo ser um indivíduo extemporâneo, de princípios arcaicos, incapaz de me adequar aos valores e sonoridades do meu tempo, pois adorei ouvir de novo aquela voz cheia de vibrato e idealismo que só a garganta de Baez é - ou era - capaz de produzir.

Enquanto bebo um vinho siciliano na escuridão da varanda, ouço o disco com um prazer mudo. Até o momento em que ela chega à última canção, aquela que talvez seja a que mais me comova entre todas as canções de Dylan. Ele escreveu A Hard Rain's a-gonna Fall em 1962, durante a crise dos mísseis em Cuba, que quase provocou a terceira guerra mundial e o fim de tudo isso que conhecemos e a que nos agarramos como náufragos. Tinha 22 anos. Voltei a prestar atenção na letra, como faço desde que me deparei pela primeira vez com a canção, num disco de vinil gravado ao vivo não sei mais onde (depois ganhei de uma amiga em CD o clássico The Freewheelin' Bob Dylan e pude ouvir a gravação original).

Está tudo lá. Toda nossa dor está lá. O massacre de Realengo está lá. Os massacres de Columbine e Beslan também estão, assim como os terremotos do Japão ou do Haiti ou os bombardeios contra civis que viraram regra em nosso tempo. Dylan escreveu uma canção definitiva, apocalíptica. Peguei na minha estante um velho volume com suas letras traduzidas e na introdução do livro o editor reproduz um depoimento do poeta: "É uma canção de desespero. Cada verso dela é realmente o começo de uma nova canção. Mas quando a escrevi, pensei que não ia viver tempo suficiente para fazer essas canções e portanto pus nessa tudo que pude".

Já escrevi poemas igualmente desesperados aos 22 anos, um período particularmente difícil da minha vida. Mas não levado por uma avalanche poética como Dylan. Como ele conseguiu? Ouço neste momento Joan Baez cantá-la. Um mantra terrível, com versos como "Vi armas e espadas afiadas nas mãos de crianças" ou "Ouvi o rugir de uma onda que podia engolir o mundo inteiro" ou ainda "Eu ouvi uma pessoa morrendo de fome, eu ouvi muitas pessoas rindo". Baez canta esses versos com uma dor que comove, e em nenhum momento acalenta. Ela nos arremessa contra nossos próprios medos sem qualquer expectativa de redenção. E nos deixa sós, na noite alta, à espera de mais tragédias absurdas, suportando o nosso vazio sem voz, o nosso desencanto tolo e sem sentido.

4 comentários:

karla disse...

A cada dia estamos mais sós........

Paulo Sales disse...

Sim, o absurdo do mundo atual nos isola, nos deixa sozinhos.
Um beijo

Socorro disse...

Será que sou cafona? Ainda gosto de ouvir Joan Baez...

Paulo Sales disse...

Do jeito que andam os modismos, Socorrinho, acho ótimo sermos cafonas.
bjs