sábado, 2 de abril de 2011

Trocando em miúdos


Um estudo recente, realizado pela Universidade de Michigan, parece endossar o que mentes feridas mundo afora já sabiam há muito tempo, mas não tinham como provar: sofrer uma rejeição social é algo tão doloroso quanto o sofrimento físico. Nesse sentido, um corte profundo no pé pode ter o mesmo efeito de uma relação encerrada subitamente. Ethan Kross, coordenador da pesquisa, afirma: “A princípio, derramar uma xícara de café quente em você mesmo ou pensar em uma pessoa com quem experimentou recentemente um rompimento inesperado parece que provoca tipos diferentes de dor, mas nosso estudo mostra que são mais semelhantes do que se pensava”. Os resultados do estudo - que serão publicados na revista Proceedings of the National Academy of Sciences - mostram que a dor, seja ela física ou psicológica, ativa as mesmas áreas do cérebro: o córtex somatossensorial e a ínsula dorsal posterior.

Ou seja, em ambas as situações, a sensação é de um machucado, uma ferida que pode ou não ser curada com o tempo. Perder alguém dói, e muito. Pode ser o equivalente a uma xícara de café quente no nosso colo, para usar a imagem do pesquisador norte-americano, ou quem sabe até um tiro, um atropelamento, uma crise de hérnia de disco. Acho que todos nós, em algum momento da vida, passamos por isso, e o resultado é a cabeça pesada, a visão turva e um vácuo lancinante em alguma parte do tórax, além da sensação de desamparo e impotência tomando conta de nós como um manto nos cobrindo aos poucos. Já passei por isso algumas vezes (poucas, felizmente), e posso dizer: é quase insuportável. É como se toda a imagem que cultivamos de nós mesmos repentinamente se transformasse num borrão, numa caricatura que ressalta o que temos de mais grotesco. Viramos um arremedo de nós mesmos, pequenos monstros de argila amorfos e sem vida, a procurar um sentido para o espaço vazio deixado no guarda-roupa ou a ligação jamais atendida. Dá um trabalho danado reconstruir o que fomos, embora a cicatriz em algum ponto do nosso córtex somatossensorial continue coçando de vez em quando. Cura? Sinceramente, não sei se existe. Prosseguimos, e é o que interessa.

Quem dera as relações amorosas fossem idílicas, solares e uniformes como nos comerciais de lançamentos imobiliários. Um sorriso, um abraço e os filhos correndo pelo gramado. O que há na verdade é uma negociação constante, uma permuta na qual um ou outro lado sai ganhando. Enquanto há um equilíbrio nesse escambo de sentimentos e aspirações, vamos levando. Quando não há, cada um segue o seu caminho - carregando a reboque eventuais filhos, partilhas na justiça e pensões alimentícias - e tudo bem. São as sobras de tudo que chamam lar, como diriam Chico e Francis. O problema é quando não fica tudo bem. Já presenciei amigos e amigas literalmente desmoronarem, enveredando pelo labirinto da própria rejeição e se alimentando dela para sobreviver. Como se arrancassem o cascão de uma ferida para mantê-la viva. Gente centrada, experiente, que parecia capaz de tirar de letra um pontapé na bunda e partir para outra. O fato é que, voltando à letra de Chico e Francis, não deveríamos cobrar pelo estrago alheio. Mas o que fazer com o peito tão dilacerado?

A pesquisa também, de certa forma, nos faz entender - embora jamais justifique - o que deve sentir quem comete um crime passional. É a lógica da legítima defesa: você está me machucando cada vez mais, então preciso revidar. É óbvio que se trata de um raciocínio enviesado, obtuso, mas não deixa de fazer sentido. Você está matando não o objeto do seu amor, mas sim a fonte do seu sofrimento. Mas aí entra um raciocínio inverso, que vai além das consequências legais: matando a pessoa que ama, quem fica no lugar dela? Como ocupar o vazio duplamente inserido lá na ínsula dorsal posterior? É um labirinto sem saída. O que me assombra em tudo isso é a frequência cada vez maior de crimes passionais, e a forma cada vez mais brutal com que são cometidos. Há, nitidamente, um processo de desintegração social, que permite a qualquer um fazer sua justiça com as próprias mãos. Quando matar se torna uma solução - sob qualquer aspecto - é porque estamos falidos como sociedade. E não há amor no mundo que justifique um ato tão extremo.

2 comentários:

Karla disse...

O mundo está estranho,Paulo. As pessoas estão a cada dia mais insensíveis. Dá medo. Beijos,

Paulo Sales disse...

Sim, Karla. Muito estranho. E nós ficamos assim, meio perplexos com tudo isso e sem saber o que fazer.
Beijo.