quinta-feira, 14 de julho de 2011

O preço da nostalgia



Ao longo de décadas de leitura conheci alguns personagens com os quais me identifiquei profundamente. Havia muito de mim em Mathieu Delarue, o anti-herói existencialista que clama intimamente por liberdade em A Idade da Razão, de Sartre. Ou em Sal Paradise, o aventureiro que cruzava as estradas da América em busca da própria essência no clássico beat On the Road, de Jack Kerouac. Ou ainda em Jake Barnes, o beberrão atormentado e hedonista de O Sol Também se Levanta, meu Hemingway preferido. Mais recentemente, ao ler Conversa na Catedral, de Vargas Llosa (sobre o qual comentei aqui recentemente), vi a mim mesmo na pele de Santiago Zavala, um dos personagens mais palpáveis com que me deparei nessas andanças imaginárias por milhas e milhas de palavras e entrelinhas. Todos eles fazem parte do que sou, assim como alguns personagens dos contos e romances de Fitzgerald ou tipos momentaneamente esquecidos por minha mente cansada.

Mas nenhum deles se parece tanto comigo – seja pela forma de pensar, pelos ídolos literários ou pela propensão à nostalgia – quanto um sujeito que encontrei no cinema domingo passado: Gil Pender, o frustrado escritor e roteirista de Meia-Noite em Paris, novo filme de Woody Allen. Um filme delicioso, diga-se de passagem, que marca o retorno do cineasta ao auge (por menos pretensiosa que seja esta comédia de acento fabular). Sim, eu me vi espelhado nos cabelos loiros e no nariz torto de Owen Wilson, que empresta sua estampa ligeiramente desajeitada e melancólica a um indivíduo fascinante. É claro que um personagem de cinema dificilmente alcançará a profundidade de um congênere literário, ainda mais em se tratando de um personagem alegórico, que habita uma trama amparada em clichês bem definidos – e magistralmente subvertidos. Gil está longe de ostentar, por exemplo, a complexidade de um Raskolnikov.

O fato, porém, é que meus pequenos sonhos românticos estão lá no filme, verbalizados por ele: morar em Paris, trabalhar com literatura e, principalmente, ser capaz de viver em um período histórico que me fascina acima de todos os outros. Gil cultiva a nostalgia de um tempo não vivido – no caso, a década de 1920, quando a capital francesa foi invadida por hordas de escritores e artistas, em grande parte americanos expatriados, imortalizados com a alcunha de Geração Perdida. Tanto eu quanto ele consideramos esse hiato que separa a humanidade de duas guerras absurdamente brutais o ápice da civilização. Tanto eu quanto ele lamentamos a nossa inadequação ao mundo atual e alimentamos o desejo de ter nascido e vivido em uma outra era (já falei sobre isso aqui no blog).

Meia-Noite em Paris trata desses assuntos com leveza, doçura e humor, mas sua conclusão é de certa forma amarga. Ao voltar ao passado e reencontrar Hemingway, Scott e Zelda Fitzgerald, Salvador Dalí, Cole Porter, Luis Buñuel e Gertrude Stein, entre tantos outros ícones dos anos loucos, Gil se depara com o fato de que, para quem vivia aquele presente, a Era de Ouro já havia passado. Ao voltar ainda mais no tempo e encontrar Toulouse-Lautrec, Edgar Degas e Paul Gauguin no final do século 19, eles se queixam que a verdadeira Belle Époque foi a Renascença. E assim por diante – ou melhor, para trás. Não existe, portanto, um lugar ideal no espaço-tempo, um útero imaginário para onde podemos voltar sempre que o sentimento de inadequação nos toma de assalto. Passado, presente e futuro são apenas monótonas variações sobre um mesmo tema.

Quanto à nostalgia, até que ponto ela é salutar e até que ponto revela um aspecto negativo da nossa personalidade? Ansiar pelo passado não seria uma forma de negar o futuro, ou mesmo o presente? E, ao negar o presente, não corremos o risco de nos abrigarmos numa bolha, refratária a uma existência mais tranqüila e menos desconfortável? Provavelmente sim. Embrenhar-se na nostalgia é como fazer pesca submarina no oceano sem o auxílio de tubos de oxigênio. Imergimos até certo ponto, mas é preciso guardar um pouco de ar para o retorno à superfície, caso contrário permaneceremos num limbo. Ao final, Gil irá descobrir que o presente tem lá seus atrativos – desde, é claro, que tome decisões cruciais, que o aproximem do homem que quer ser. Isso vale para ele, para mim e para qualquer um de nós.

8 comentários:

karla disse...

É......o passado é sempre mais confortável por ser conhecido. O futuro é inseguro e incerto, dá medo. Estou louca pra ver o filme de Woody Allen, depois do seu lindo texto então, fiquei com mais vontade. Beijo

Paulo Sales disse...

Oi, Karla
Sim, e muitas vezes é difícil sair da zona do conforto para abraçar o desconhecido - em todos os sentidos. Vá ver o filme. A gente sai dele leve, de alma lavada.
Muito obrigado pelo elogio.
Um beijo.

Socorro disse...

Muito bom, como sempre.

Paulo Sales disse...

Gracias, Socorrinho.
Beijos

Tê Barretto disse...

Maravilhosa (auto) reflexão, compadre. Me fez perceber o quão nada nostálgica ando. Em verdade, cada dia quero passar pelo presente (e deixá-lo no passado) para ter sobrevida futura. Quanto ao filme, não vi. Fui deixando, fui deixando, daí impliquei com Owen Wilson e não fui mais.

Paulo Sales disse...

Obrigado, Comadre.
Curioso como olhamos a vida sob perspectivas bem distintas, embora eu não ache que a nostalgia seja sempre válida. Apenas torna o nosso mundo imaginário mais aconchegante.
Vá ver o filme. Acho que ainda está nos cinemas, e Owen Wilson, acredite, encarna um perfeito alter ego de Woody Allen. Já tinha gostado dele em Marley e Eu. Há algo de desamparo nele que combina com o personagem e o diretor.
Beijo grande.

Ricardo Ballarine disse...

Sempre pensamos no passado como forma de nos adaptarmos ao que nos apresenta. Como se no passado nossas decisões pudessem ser diferentes - e no fundo é disso que se trata, de nossas decisões, de convivermos com ela no momento em que as vivemos. A nostalgia se vinga como um sonho. Woody Allen captou com perfeição.

Paulo Sales disse...

Interessante a sua abordagem. Talvez seja isso mesmo: tomar decisões cruciais implica encarar o presente, no que ele tem de mais árido e inescapável. Daí ser tão importante a nostalgia.
Um abraço.