sexta-feira, 29 de julho de 2011

Odisséia americana



Pouco antes de morrer, Johnny Cash gravou uma série de canções de outros compositores. Há coisas lindas, como a releitura de Hurt, do Nine Inch Nails, que ganhou com ele um tom abissal, quase apocalíptico. E também One (U2), Bridge Over Troubled Water (Simon & Garfunkel) e In My Life (Beatles). Mas, entre todas essas gravações outonais, há uma música do próprio Cash que me comove mais do que qualquer outra: Give my Love to Rose. Ela pertence à linhagem de canções que deram forma à faceta de “storyteller” do cantor, da qual fazem parte pérolas como The Reverend Mr. Black, The Ballad of Ira Hayes e The Last Gunfighter Ballad.

Cash conta a história de um homem que encontra um sujeito agonizando ao lado de uma estrada de ferro. Ele vira seu corpo para ajudá-lo e escutar o que tem a dizer. E o que esse homem tão perto da morte diz é de cortar o coração: após passar 10 anos numa prisão em São Francisco, pagando por algum crime que havia cometido, o desconhecido queria apenas voltar para a Louisiana para rever a esposa, Rose, e conhecer seu filho. Pede ao seu interlocutor que leve até Rose a sacola onde está todo o seu dinheiro, para que ela possa comprar umas roupas, e que diga ao garoto que seu pai está muito orgulhoso dele. E, num lamento desesperado, pede para que leve todo o seu amor para Rose.

Há toda uma concepção de país por trás dessa pequena história de amor e solidariedade. Na sua simplicidade, Cash deu forma a uma odisséia impossível de retorno à Louisiana natal. Está ali toda a vastidão da América, a solidão inabalável dos seus grandes espaços abertos, a porta que abre e fecha em Rastros de Ódio, de John Ford, trazendo desconhecidos e com eles boas ou más notícias. Estão ali o crime e o castigo, e também a confiança no próximo, traduzida no conceito anglo-saxão de “trust”, que permeia as relações entre as pessoas no país. É essa percepção de confiança que permite que um homem à beira da morte transfira a um desconhecido todo o seu dinheiro e a missão de levá-lo à mulher que ama.

Estamos, claro, falando de um mundo ideal, onde a bondade e a honestidade seriam tão rotineiras no cotidiano da América profunda quanto a torta de maçã esfriando na janela ou os ovos com bacon no café da manhã. Mas o fato é que essa relação de respeito e confiança no próximo é parte integrante do imaginário norte-americano. Ela está presente, por exemplo, em A História Real, filme de David Lynch, nas pessoas que ajudam o velho viajante Alvin a continuar sua jornada a bordo de um cortador de grama para reencontrar o irmão e acertar as contas com o próprio passado. Está presente também na forma destemida com que Sal Paradise e Dean Moriarty cruzavam a América de carona, carro, ônibus ou trem em On The Road, de Jack Kerouac, sempre louvando a generosidade pura das pessoas simples e confiando que haveria alguma alma boa para ajudá-los caso houvesse algum problema.

Johnny Cash registra magistralmente essa confiança em sua canção singela, e imprime tamanha sinceridade à sua voz que ninguém duvida de que tenha realmente viajado até a Louisiana para levar a mensagem do homem à beira da morte para a sua família. É impossível não sentir uma pontada de tristeza quando ele canta: “Give my Love to Rose, please won’t you, mister?”, num lamento desesperado de quem não pode mais prosseguir na odisséia rumo à felicidade perdida. Ao ouvi-lo, nós também sentimos na pele a necessidade premente de levar adiante o último desejo de um desconhecido, pelo simples fato de ele acreditar na nossa honestidade.

*

Give my Love to Rose

I found him by the railroad track this morning
I could see that he was nearly dead
I knelt down beside him and I listened
Just to hear the words the dying fellow said

He said they let me out of prison down in Frisco
For ten long years I've paid for what I've done
I was trying to get back to Louisiana
To see my Rose and get to know my son

Give my love to Rose please won't you mister
Take her all my money, tell her to buy some pretty clothes
Tell my boy his daddy's so proud of him
And don't forget to give my love to Rose

Tell them I said thanks for waiting for me
Tell my boy to help his mom at home
Tell my Rose to try to find another
For it ain't right that she should live alone

Mister here's a bag with all my money
It won't last them long the way it goes
God bless you for finding me this morning
And don't forget to give my love to Rose

Give my love to Rose please won't you mister
Take her all my money, tell her to buy some pretty clothes
Tell my boy his daddy's so proud of him
And don't forget to give my love to Rose

5 comentários:

karla disse...

Não conhecia muito Johnny Cash, só o básico mesmo, mas depois de você falar tão bem, estou ouvindo mais e gostando muito! Beijo

Paulo Sales disse...

Ah, ele é tão bom. Quando era mais novo, adorava um disco de vinil dele chamado The Storyteller, só com canções que contam pequenas histórias cotidianas. E sua voz é um assombro, parece saída do princípio do mundo.
Um beijo.

Armundo disse...

De fato, Paulo, é uma voz e tanto. Gosto muito da sua interpretação de "In my life". Mesmo não sendo sua a música, ele passa plena sinceridade em cantar verso a verso. "Give my love to Rose", com um caso da América profunda, lembra o clima, poético e sonoro, de "Nebraska", de Bruce Springsteen, outra grande voz.

Paulo Sales disse...

Oi, Armundo
O que mais me encanta em Cash é justamente essa capacidade que ele tem de transformar uma música e imprimir sinceridade aos versos que está cantando. Isso acontece, como você disse, com In My Life e também com Hurt, que ficou assustadoramente linda na voz dele.
Grande abraço.

Armundo disse...

É mesmo, Hurt é impressionante. Depois dele, ninguém em sã consciência se atreveria a gravá-la.