quinta-feira, 7 de julho de 2011

Um país outonal


Não conhecia o Uruguai quando li Gracias por el Fuego, de Mario Benedetti. Descrito por sua pena impiedosa, o "amorfo país de andrajosos" me fazia pensar em mais uma republiqueta sul-americana de passado melancólico e futuro incerto, como Bolívia ou Venezuela. Não tinha idéia de como eram as ramblas que perpassam toda a cidade de Montevidéu, o bairro de Pocitos e muitas outras partes da capital retratadas por ele também no clássico A Trégua e em alguns contos de Correio do Tempo. Mas o fato é que, em apenas cinco dias por lá, o Uruguai me surpreendeu, e a imagem que Benedetti legou à minha imaginação de leitor acabou ofuscada pela realidade. Uma realidade positiva, acima de tudo, mesmo tendo passado por lá uma das piores experiências que podem ocorrer a um viajante: ser roubado.

De carro, a caminho de Punta Del Este, parei para uma visita à Casapueblo, em Punta Ballena, um inusitado hotel-museu concebido pelo artista Carlos Páez Vilaró. Estacionei o carro, cheio de bagagens, e entramos. Quando voltei, o vidro do carona estava quebrado e tinham sido levadas sacolas e pastas contendo os nossos passaportes, o meu tablet, livros, DVDs, chaves, jóias, dinheiro e muitas, mas muitas outras coisas, incluindo um pequeno volume de poemas do próprio Benedetti, comprado com todo carinho na livraria El Ateneo, em Buenos Aires. Isso doeu fundo, e a partir daí o resto da viagem foi apenas um tormento que, passados apenas cinco dias e já confortavelmente instalado em minha casa, obviamente não apaguei da memória. Por mais que não parecesse, estava sim em um país sul-americano, inseguro e desigual.

Mas seria injusto guardar uma recordação tão amarga de um país (ou melhor: de uma cidade) do qual gostei tanto. Montevidéu é desses lugares que nos provocam um sentimento de afeto, um desejo de ficar mais, indefinidamente, ou quem sabe até definitivamente. Ao passear por suas ramblas, pensei em uma velhice feliz numa daquelas varandas dos prédios de Pocitos ou Punta Carretas, contemplando sem pressa o Rio da Prata, levando um cão para passear e sentindo o vento gelado me tomar sem trégua. Lá, até os cachorros contemplam o horizonte. Uma cidade outonal, poderia dizer, que caminha sem alarde para um ocaso indefinido. Se Buenos Aires, na outra margem do rio, sintetiza uma aspiração malograda de grandeza e glamour de inspiração européia, Montevidéu se resguarda na própria timidez, e talvez num desencanto crônico de quem não espera mais uma grande reviravolta da história.

Já Punta Del Este me pareceu uma filial da Collins Avenue fincada abaixo do Trópico de Capricórnio. Suas casas e prédios ostensivamente luxuosos e ainda mais ostensivamente vazios num inverno gelado celebram o excesso, e até uma certa breguice. No principal hotel-cassino da cidade, um cartaz informava que dali a alguns dias o filho de Frank Sinatra se apresentaria cantando as músicas do pai, numas dessas apropriações indébitas só legitimadas pela genética. Mas Punta não é o Uruguai, embora, pelo curto tempo passado por lá, eu também não seja capaz de dizer o que realmente é o Uruguai, qual a matéria-prima desse território diminuto, oprimido por dois vizinhos gigantes. Há o litoral, os pampas que se estendem até o Rio Grande, os pequenos balneários banhados pelo Prata e mais o quê? Onde ficam as fronteiras que delimitam a sua essência de país?

Os uruguaios são simpáticos, educados e muito solícitos, e no geral ligeiramente tímidos. Parecem conscientes da própria desimportância. Queixam-se do custo de vida altíssimo e da violência crescente nas áreas mais afastadas, mas em geral parecem viver com dignidade, sem a desigualdade abissal e a brutalidade cotidiana que encontramos pelas bandas de cá. Também não padecem, como nós, de uma mania de grandeza gratuita e sem motivo, nem se consideram o país do futuro ou o melhor povo do mundo. Apenas observam, caminhando com chimarrão e garrafas térmicas nas mãos, a vida se esvair em silêncio e frio.

4 comentários:

Ricardo Ballarine disse...

Putz, que mal, cara, perder tudo isso. Em casa já seria ruim, imagine fora. Mais do que o prejuízo financeiro, há um desfalque emocional que a gente não consegue alcançar. Nunca passei por isso. Pelo menos você ainda consegue ver o Uruguai com ternura.

Paulo Sales disse...

Rapaz, foi e está sendo muito complicado. A cada dia dou por falta de uma coisa. Sem falar nesse desfalque emocional a que você se refere. É terrível. Os livros que comprei, o Liberdade, de Franzen, que estava lendo com interesse. Os livros de Borges e Benedetti. Os passaportes, o ipad, os óculos, a chave do carro. Enfim, uma sensação de desamparo. Mas seria injusto associar tudo isso aos dias deliciosos que passei em Montevidéu, uma cidade que merece um retorno.
Grande abraço, meu velho.

karla disse...

Que chato isso. Mas deve ter sido muito bom conhecer a terra de Benedetti. Adoro tudo que já li dele. Me identifiquei muito com a descrição de como você quer viver a sua velhice, Paulo. É assim que quero a minha também.rs. Beijo

Paulo Sales disse...

Oi, Karla
Sim, apesar de tudo foi muito bom. Benedetti é um escritor que me encanta, e olha que nem faz tanto tempo que li um livro dele pela primeira vez. Quanto à velhice, acho que é mais um desejo de que ela me traga alguma felicidade e poucos percalços e sofrimentos físicos. Mas ainda tem muito tempo até a gente chegar lá.
Um beijo