sábado, 10 de novembro de 2012

Adoração tardia




Eu era criança e gostava da canção Leãozinho, de Caetano Veloso. Mas, para um incipiente amante do mundo animal, havia uma incongruência na letra. “Gosto de te ver ao sol, Leãozinho, de te ver entrar no mar”. De acordo com minha mente infantil, mas já suficientemente bem informada, leões não entravam no mar. Eram animais que habitavam savanas, regiões áridas, sem água abundante. Meu irmão mais velho então me explicou: “Leãozinho é uma pessoa, um cara”. Aquilo me provocou um sentimento de decepção, uma sensação de que o mundo era muito mais complexo e estranho do que imaginava aquele garoto ingênuo, incapaz de perceber o conteúdo nitidamente gay daquela canção de louvor a um homem por quem o autor parecia irresistivelmente apaixonado. Poucos anos depois, já no colegial, apelidei uma colega de Leãozinho, e usava a canção e o apelido para declarar a ela a minha paixão tímida e inaudita.

Caetano sempre esteve relegado a um segundo plano lá em casa. O gênio indiscutível era Chico Buarque, e através dele a minha inocência foi sendo aos poucos reduzida a pó. Chico tocava fundo em mim com suas canções lancinantes, com seus versos que fincavam estacas de maturidade naquele cérebro infanto-juvenil. “Leva o vulto teu, que a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto, do filho que já morreu”. Era óbvio que aquilo queria me dizer alguma coisa essencial, embora eu só fosse compreendê-la em sua totalidade muitos anos mais tarde. Mas, enfim, Chico povoou a minha infância. Caetano, não. Lembro do meu pai desqualificando sem meias medidas a poesia do filho de Dona Canô: “Caetano só canta aquelas besteiras, tipo ‘eu tomo uma Coca-Cola, ela pensa em casamento’”.

Talvez tudo isso tenha contribuído para que Caetano Veloso chegasse tão tarde até mim. Logo agora, que ele está ancorado na sensatez inquieta dos seus 70 anos. Eu, por minha vez, descubro aos 42 anos que estou diante de um gênio. De um poeta com profunda sensibilidade, capaz de formular frases aparentemente simplórias, mas que soam surpreendentes, verdadeiras, desassossegadas, atemporais. Alguns de seus discos dos anos 70 são obras-primas incontestáveis: Transa (principalmente), Muito, Qualquer Coisa, Bicho e tantos outros. Canções impregnadas de um prazer sensorial que só agora, 40 anos depois de concebidas, atingiram o alvo. É claro que este texto, embebido em duas garrafas de vinho e diretamente influenciado pelo que ouço agora, neste início de madrugada, pode soar um tanto laudatório. Mas o fato é que esse sentimento de revelação tardia vem me acompanhando de forma permanente nos últimos meses. Caetano simplesmente me fascina, como em outros tempos fascinou milhares de pessoas.

Confesso que não entendia essa devoção. Achava Caetano supervalorizado, produto de uma espantosa capacidade de autopromoção. Afinal, o que havia de genial em frases como “a força da grana que ergue e destrói coisas belas” ou “que a força mande coragem pra gente te dar carinho durante toda a viagem que realizas no nada, através do qual carregas o nome da tua carne”? Bem, havia tudo. Claro que estou chegando atrasado, que o bonde já passou há muito tempo. Não tive interesse em ouvir os últimos discos de Caetano, e concordo com a tese do meu irmão de que ele não produziu nada de relevante nos últimos, sei lá, 20 anos. O fato é que gosto do Caetano que existiu quando era uma criança. Eu tinha dois anos quando Transa foi gravado, no exílio, fruto de uma saudade que só hoje apreendo. A saudade de Santo Amaro, do cheiro inconfundível do Recôncavo, da triste e dessemelhante Bahia, de um país que se encaminhava sem dó rumo a um futuro sombrio. Uma saudade que, percebo agora, é minha também. 

7 comentários:

Giovanni Soares disse...

Olá, Paulinho! Eu sempre achei - e ainda acho - Caetano Veloso um gênio. Ele foi quem melhor incorporou o que havia de melhor nos outros dois gênios baianos, que são fundamentais na Música Popular Brasileira: Dorival Caymmi e João Gilberto. Mas confesso que, nos últimos anos, tenho dado um tempo da música dele. Mas não resisto, de quando em vez, ouvir alguma coisa. A música "Um índio", por exemplo, que está no disco "Bicho", é simplesmente demais. Aliás, não sei se você já reparou, Caetano adora colocar gírias nos títulos dos seus discos: "Transa", "Jóia", "Bicho", "Velô"... Enfim, amigo, belo e oportuno post. O Caetano está prestes a lançar mais um trabalho, chamado "Abraçaço". E como bom marqueteiro que é, o famoso santo-amarense deve voltar à mídia a todo vapor. Vida longa para ele!

Paulo Sales disse...

Valeu, grande Giovanni
Eu passei muito tempo dando um tempo da música dele, agora estou redescobrindo os discos que fez no seu auge (talvez descobrindo, dado o sentimento de revelação que eles estão provocando em mim). O mais legal, ouvindo esses discos, é perceber a ponte que ele fez entre Caymmi e João, como você citou, e a então vanguarda dos Beatles, Stones, Dylan, etc. E a sonoridade é muito moderna. Transa é um discaço.
Grande abraço, meu velho.

Leo Maia disse...

Meu caro, é sensacional ter descobertas tardias, afinal o mais importante é nunca se fechar totalmente para revelacoes. E ate quebrar alguns preconceitos. Adoro Caetano e so fui mergulhar em Chico recentemente. Caminhos inversos. Gosto ate de algumas coisas recentes que Caetano fez. Na epoca do Folha, entrevistei-o duas vezes, uma delas com um resultado bem bacana. Abracao!

Paulo Sales disse...

Verdade, Léo, é fundamental se manter atento a novas descobertas. E o legal neste caso de Caetano é o fato de ele ser um velho conhecido, embora nunca tenha sido um amigo íntimo. Nunca o entrevistei, o que é uma pena.
Grande abraço!

Giovanni Soares disse...

Paulinho, em junho último, coloquei no Notícias da Paulicéia um post sobre o disco Transa que, realmente, é um discaço. Caso não tenho conferido, é só acessar o endereço abaixo:
http://noticiasdapauliceia.blogspot.com.br/2012/06/transa.html
Abração,

Paulo Sales disse...

Claro que li, meu velho. Vou aproveitar e dar uma lida novamente.
Valeu.

Nina disse...

Já que "estamos" falando de Jonh Donne, esse música é baseada em um poema dele:

http://www.youtube.com/watch?v=ICJugjDnq0I

(http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet206.htm)