terça-feira, 27 de novembro de 2012

Portas de percepção




Em Joseph Anton, seu recém-lançado livro de memórias, o escritor anglo-indiano Salman Rushdie escreveu: “À medida que crescemos, nós nos acostumamos com o jeito como as coisas são, à cotidianidade da vida, e uma espécie de poeira ou película nos tolda a visão, e com isso nos escapa a natureza verdadeira, miraculosa, da vida na Terra. A tarefa do artista consiste em remover essa camada que nos cega e restaurar nossa capacidade de maravilhamento”.

Um livro como o de Rushdie é por si só uma comprovação do que ele afirmou. Capaz de remover a camada de mesmice e nos fazer enxergar melhor e com mais nitidez, como se fizéssemos com o nosso cérebro o mesmo movimento de dedos que fazemos para aproximar uma imagem em um smartphone, numa espécie de zoom da própria consciência. Algo simplesmente se ilumina, como uma clareira numa mata fechada. Mas há diferentes formas de “maravilhamento”, diversas maneiras de chegar com precisão àquele ponto ínfimo de interseção entre a massa encefálica e o músculo cardíaco. São sentimentos distintos que nos enlaçam e abrem portas de percepção em algum território ermo e rarefeito do nosso íntimo.

No meu caso, o que sinto ao ouvir, por exemplo, Gilberto Gil cantando Pai e Mãe é diametralmente oposto ao prazer que me atinge quando escuto Joshua Bell tocar a Serenade de Schubert. Um prazer mais sensorial, que me enleva e me lança para longe de mim, enquanto o outro sentimento mexe com minhas reminiscências, minhas ausências, meus arraigados princípios morais. Enfim, me leva a pensar. Hemingway me atinge de uma maneira, Fitzgerald, de outra, mas ambos às vezes me deixam com o coração exaurido. A cena final de A Insustentável Leveza do Ser (até hoje o meu filme predileto) já me levou aos prantos mais de uma vez, assim como o final de, quem diria, Procurando Nemo. Em um, o desespero e o desalento diante da extinção inevitável. No outro, a saudade em carne viva do pai para sempre perdido.

O fato é que arte verdadeira, e não apenas a literatura, nos enche de centelhas, nos povoa de questionamentos, nos inunda de conhecimento de nós mesmos. É como se nos tirasse da caverna e nos apresentasse à luz do dia. Por outro lado, nos torna ainda mais ignorantes diante do infinito, como neandertais fascinados pela lua, embora incapazes de compreendê-la. Como alguém já escreveu, o que o artista cria é muito diferente do que o leitor/espectador/ouvinte interpreta. Nenhuma obra é fechada em si mesma. É, sim, um eterno trabalho em andamento, movendo-se ao sabor dos tempos e das diferentes formas de compreensão, ou – no caso dos Versos Satânicos de Rushdie – da mais completa incompreensão. Voltando a ele: “A alma tinha muitos desvãos escuros, e às vezes os livros os iluminavam”.

Tive o privilégio de, desde menino, ter sido capaz de iluminar os meus próprios desvãos graças ao conhecimento do mundo que me trouxeram livrinhos despretensiosos, como Viagem ao Mundo Desconhecido, Coração de Onça, A Máquina do Tempo e As Aventuras de Tibicuera. Meus desvãos então já eram muitos, e por vezes se abriam como gavetas, onde até hoje escondo medos, dúvidas e frustrações. A cada grande livro, filme ou canção (mas sobretudo a cada grande livro), essas gavetas se abrem e me permitem contemplar o seu conteúdo, examinar suas nuances, verificar o quanto mudaram desde a última vez em que foram expostos. São como um retrato de Dorian Gray ao contrário, que guarda a minha essência intacta, enquanto lá fora o invólucro se corrompe e perde o vigor com a passagem dos anos. 

2 comentários:

Nina disse...

Excelente texto. Emocionante, também!
Acabo de participar de um fórum no Rio em que muito se falou sobre isso...
Sincronicidade!
Beijo!

Paulo Sales disse...

Obrigado, Nina. Sua presença aqui é sempre bem-vinda.
Um beijo.