quarta-feira, 27 de março de 2013

Conversa na varanda




Às vezes, quando é alta a madrugada e me sinto só, eu penso comigo mesmo: como seria bom se a realidade pudesse entrar em suspensão. Seria só um breve hiato, desses que acontecem de um jeito quase prosaico nos contos de Borges. Capaz de me transportar para o reino do fantástico e me trazer de volta, ainda que por algumas horas, quem perdi um dia. Uma noite seria o bastante, apenas uma noite. Deixaria a varanda para ir à cozinha pegar água e quando voltasse me depararia com meu pai sentado na cadeira, me esperando. Não ficaria atônito ou assustado, muito menos me desesperaria com o fato de que o meu ateísmo, naquele momento, se reduziria ao pó do qual viemos e ao qual voltaremos. Ali, na mesma varanda da minha casa, onde costumo ficar até a madrugada, ouvindo música e bebendo vagarosamente a última taça de vinho. 

Sentaria ao lado de meu pai e conversaríamos sobre as coisas que aconteceram nesses quase infinitos dez anos que nos separam. Iniciaríamos com as platitudes: diria que estamos todos bem, que sentimos a sua falta e que vamos levando a vida como se deve. Depois relataria de memória alguns episódios que aconteceram de 2003 para cá. Lembraria, provavelmente, do tsunami que matou 250 mil pessoas na Ásia, no natal de 2004, e da morte de Paul Newman, que ele tanto admirava, em 2008. E é claro que lhe contaria sobre o heróico campeonato brasileiro conquistado pelo Mengão em 2009, comandado por Petkovic e Adriano (tenho certeza de que ele diria com alguma incredulidade: “Foi mesmo?”).

Diria mais. Comentaria sobre os livros que li, os filmes que assisti, os países que conheci. Confessaria que lembrei muito dele quando estive no Chile. Ou em Paris. Ou em qualquer outro canto onde sentei para beber um vinho olhando ao redor, absorto em mim mesmo, como ele costumava fazer. Mostraria fotos de minha filha e o levaria até o quarto dela, para que ele a visse dormindo. Imagino o seu espanto ao se dar conta de como ela cresceu. Diria ainda que ele ganhou mais uma neta, loirinha e de olhos azuis, e em seguida abriria o melhor vinho da adega para que pudéssemos relembrar melhor os 33 anos de interseção entre a vida dele e a minha vida.

Mas, principalmente, ficaríamos vários minutos imersos em um silêncio cúmplice, como já ficamos muitas e muitas e muitas noites, bebendo ou fumando. Um silêncio morno e sereno, que me enchia de uma sensação aconchegante e que até hoje me enche de saudade. Não procuraria saber dele o que é o além ou o infinito, nem buscaria a resposta para o  inútil questionamento que fazemos há 10 mil anos ou mais: para onde vamos? E pouco me importaria com a chegada da aurora, mesmo sabendo que com ela a realidade – clara, quente e violenta como um bombardeio aéreo – expulsaria da varanda essa frágil lacuna de fantasia. Garrafa vazia, sono chegando, nos despediríamos enfim com um abraço e ele sairia pela porta, como saiu tantas outras vezes, com a diferença de que sempre voltava.

12 comentários:

Chico Salles disse...

Muito bonito, Paulão, bela homenagem aos 10 anos sem o velho. Emocionou.

Paulo Sales disse...

Valeu, papá. 10 anos que lembro todos os dias.
Um abraço.

Morgana disse...

Texto carregado de emoção e beleza. Gosto de você, Paulinho. Beijo! Morga

Paulo Sales disse...

Obrigado, Morga. Apareça sempre.
Um beijo.

claudio disse...

Muito bom !

Paulo Sales disse...

Valeu, Claudião.
Abs

karla disse...

Que lindo..........

Paulo Sales disse...

Valeu, Karlinha.
bjs

Sônia Silva disse...

Gostei do visual e os artigos são bons, parabéns!

Bjo

Paulo Sales disse...

Obrigado, Sônia. Apareça sempre.
Bjs

Bruno Cartaxo disse...

Belo texto, Paulão.
É por isso que eu sempre passo por aqui. Abs

Paulo Sales disse...

Valeu, Bruninho. Continue aparecendo sempre.
Grande abraço.