sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Uma espécie de saudade




No rádio do táxi, o locutor falava sobre um ciclone poderoso que se aproximava da costa, provocando o deslocamento de milhares de pessoas. Meio alarmado, perguntei se aquilo era em Portugal e o taxista me tranquilizou: “Não, é lá nas Filipinas. O nosso ciclone é outro”, e sorriu com um travo quase imperceptível de amargor. Perguntei se ele se referia à crise econômica e disse que sim, complementando: “A Europa é um projeto fracassado”. Ele nos deixou no Chiado e saímos caminhando pelas ruas. O tal projeto fracassado era inapreensível para mim. Talvez um empobrecimento momentâneo após alguns anos de bonança, o que não deixa de ser grave. Mas estava definitivamente diante de uma civilização avançada, que evoluiu muito dos tempos do salazarismo para cá.

Volto aos taxistas. É possível arranhar a superfície da alma lisboeta ao conversar com eles, com sua sintaxe peculiar, em geral mais comunicativos que no restante da Europa (ou talvez seja a língua comum que facilite). Conheci sobreviventes de tragédias passadas, como a extrovertida senhora que guiava com surpreendente desenvoltura pelas ruelas fervilhantes do Bairro Alto no início de madrugada. Enquanto nos levava ao hotel, ela resumiu rapidamente a sua história: vivia em Angola quando eclodiu a guerra no país, então fugiu com os filhos para a África do Sul. Lá, precisou fugir novamente, quando o país se destroçou durante os conflitos que marcaram o fim do apartheid. Foi para o Rio de Janeiro, pois precisava proteger suas crianças. Mas era uma época (não muito diferente de hoje) em que até a polícia matava crianças, como ocorreu na chacina da Candelária. Voltou a Lisboa para acompanhar os últimos dias de vida do pai e lá ficou, enfim. Suas crianças, hoje adultas, moram nos Estados Unidos.

Outro sobrevivente que conhecemos nas ruas de Lisboa foi um ex-combatente da guerra de Angola. Ele nos disse que não viaja de avião nem de navio por ter escapado de desastres terríveis nesses dois meios de transporte. “No avião morreram 14 pessoas e eu sobrevivi, talvez porque sou católico. E no navio, durante a guerra, perdi pessoas queridas em um naufrágio”. Comento com ele que a guerra é uma experiência que jamais se esquece, e ele concorda, com certa amargura: “Sem dúvida, amigo, sem dúvida”. É um senhor simpático de 70 anos, que recentemente fez uma viagem a Salamanca a bordo do seu velho Mercedes com 17 anos de uso e mais de 1 milhão de quilômetros rodados.

A melancolia tipicamente portuguesa parece ter se dissipado em parte, ao menos na capital. Lisboa é uma cidade vibrante, embora um pouco ensimesmada, mas de qualquer modo belíssima. Nela, a sensação de pertencimento que senti em Paris voltou a se manifestar. Uma espécie de saudade. Como se algo em mim dissesse: sou daqui. Minha relação com o país, que transcende o idioma comum e é fruto de uma árvore genealógica da qual infelizmente pouco conheço os frutos mais antigos, se intensificou com os versos de Pessoa, o pensamento de Saramago e a voz de Teresa Salgueiro. Mas estar lá é outra coisa. Ao ver de perto tudo aquilo, uma emoção profunda me arrebatou. E pensei com alegria numa remota possibilidade de viver em Cascais. Sim, queria envelhecer ali, vendo a vida passar naquelas ruelas, tão perto do mar salgado feito de lágrimas de Portugal. 

7 comentários:

Giovanni Soares disse...

Paulinho, minha próxima viagem à Europa será para conhecer Portugal, país que ainda não conheço. Quero depois dicas suas. Para nós, brasileiros, visitar terras portuguesas é como visitar uma terra natal. Aproveite, amigo. Forte abraço.

Paulo Sales disse...

Será um prazer dar umas dicas, meu velho. Lisboa é fascinante e realmente me senti na terra natal.
Abração.

Manuel Galvão disse...

Não esqueça ir ao Castelo de S. Jorge...

Paulo Sales disse...

Fui. Contemplei de lá um dos mais belos finais de tarde de minha vida. Obrigado pela lembrança.

ArmundoAlves disse...

Se Lisboa confirma o estado de espírito que o canto de Teresa Salgueiro evoca, então urge ir para lá. O show de Teresa no início deste mês no TCA foi inesquecível.

Paulo Sales disse...

Sim, Armundo, há uma semelhança profunda entre a voz de Teresa, sobretudo cantando o repertório do Madredeus, e o sentimento de nostalgia que as ruas de Lisboa provocam. Assisti a um outro show dela no TCA, faz alguns anos, e foi uma bela apresentação. Mas ela no Madradeus para mim continua imbatível.

ArmundoAlves disse...

De fato, percebemos todo um cuidado nas composições, nos arranjos, na execução e, claro, na interpretação dela em seu último show em Salvador, mas o MadreDeus (com ela) é de uma força/delicadeza incomum.