segunda-feira, 31 de maio de 2010

Mundo maravilhoso


Quando era mais novo, achava a letra de What a Wonderful World uma grande bobagem. Buscava ali alguma ironia dissimulada, algo que ridicularizasse furtivamente aqueles versos tão plenos de felicidade cantados por Louis Armstrong. Sei lá, alguma coisa do tipo “eu vejo o céu azul e as nuvens brancas, mas apesar de tudo eu quero me matar”. Mas não, a canção é só otimismo em doses cavalares. Como assim, um mundo maravilhoso? E a fome, a desigualdade, a violência, as guerras, a estupidez coletiva? Como admirar céus azuis ou contemplar as cores do arco-íris num planeta tão devastado? Havia inclusive, acho que no filme Bom Dia, Vietnã, uma seqüência que se apropriava dessa ironia inexistente na música, ao mostrar imagens de confrontos, mortes em combate e rajadas de metralhadoras, enquanto o velho Satchmo despejava sua voz nascida no princípio do mundo.

É claro que esses questionamentos diziam muito mais de mim mesmo do que da música de Bob Thiele e George David Weiss. Afinal, minha trajetória sempre foi povoada por sombras e nuvens. De qualquer modo, hoje eu percebo que a estupenda beleza da canção nasce exatamente da sua textura prosaica, mundana, o que não a torna menos legítima. É basicamente o olhar do homem maduro sobre a face mais singela da existência, aquela em que vemos nossos filhos crescerem tão rápido quanto cães, enquanto tentamos a todo custo aproveitar os momentos que passamos com eles, antes que nos abandonem para se lançar à própria vida.

Todo esse sentimento de suave plenitude torna-se ainda mais emblemático quando tomamos conhecimento da vida pregressa de Louis, que enfrentou uma infância de pobreza extrema e preconceito antes de se tornar uma das vozes essenciais da América. Há muita sabedoria encravada na sua voz quando ele nos enleva e comove ao cantar versos como “I hear babies cry, I watch them grow. They'll learn much more, than I'll never know. And I think to myself, what a wonderful world”. Num mundo onde a brutalidade avança como um exército nazista, é um alento saber que não há qualquer ironia nessas palavras, e que os sentimentos contidos nelas são genuínos e puros como “um dia brilhante e abençoado”.

2 comentários:

Nina disse...

Que bonito texto, Paulo. Bonito e esperançoso ao reconhecer que são nossos filhos que nos mostram a beleza e o sentido da vida.

Acho que você não irá se surpreender quando eu lhe contar que já fiz um post sobre essa mesma música, associada à minha filha:

http://meninadecachos.blogspot.com/2008/11/depois-da-tempestade.html

Beijo

Paulo Sales disse...

Valeu, Nina.
Mais uma vez nossos textos se intercambiam. Bonito o seu também, bem no espírito da canção. Talvez vejamos nos filhos a pureza que perdemos ao deixar a infância, é uma espécie de projeção de um passado feliz.
Um beijo.