segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O homem é um bicho mau


Em O Gato por Dentro, sua singela declaração de amor aos felinos, William Burroughs relembra um episódio de infância traumático: estava com colegas e um “professor sulista com jeito e aparência de político” num acampamento escolar próximo a um rio, quando um texugo se aproximou do grupo. Era um animal pequeno, inofensivo, mas assim mesmo o professor sacou a arma e atirou contra ele. O texugo não foi atingido e, sem se dar conta do perigo, continuou se aproximando,“brincalhão, amistoso e inexperiente como os índios astecas que levaram frutas para os espanhóis, que cortaram fora suas mãos”, descreve Burroughs. Então o professor se aproximou ainda mais e, à queima-roupa, disparou vários tiros contra o bicho, que rolou morrendo pela ribanceira. Aquilo marcou o escritor, e o fez escrever: “O texugo só queria brincar e fazer umas travessuras, e leva um tiro com um .45 do exército. Dá para entender isso? Para se identificar com isso? Sinta isso. E pergunte a si mesmo: que vida vale mais? A do texugo ou daquele perverso de merda branco? Como diz Brion Gysin: o homem é um bicho mau.”

Nunca esqueci desse trecho do livro, e lembrei dele ao ler uma notícia que me chocou: um filhote de coala foi encontrado na Austrália com 15 tiros no corpo, ao lado da mãe morta. Um animal tão frágil e pequeno quanto o texugo de Burroughs, que sobreviveu não se sabe como e agora está sendo tratado por veterinários. Seu estado, claro, é muito grave, já que as balas o atingiram no estômago e no intestino e ele passou por duas cirurgias para a remoção dos bagos de chumbo. Chamado de Frodo na clínica onde está internado, o filhote é uma fêmea com pouco mais de um ano, e pertence a uma espécie ameaçada de extinção na Austrália.

Cada vez mais chego à conclusão de que o homem regrediu alguns milênios em sua escala evolutiva quando criou a pólvora e posteriormente as armas de fogo. A partir desse momento, o ato de matar, que até então exigia envolvimento físico e confronto com o oponente, tornou-se algo banal, que podia ser praticado à distância, sem qualquer desgaste físico – e, a julgar pelo que assistimos ao longo dos últimos séculos, sem desgaste moral também. Mata-se sem pretexto, sem objetivo, sem sentido, já que apertar um gatilho é tão fácil quanto dar um peteleco numa formiga que sobe no nosso braço. Camus sabia bem do que estava falando em O Estrangeiro.

Era isso o que faziam os viajantes de trem nos Estados Unidos do século 19, ao atirar por diversão em bisões enormes que ocupavam pradarias a perder de vista no caminho do oeste, até ficarem quase extintos. É isso o que ainda fazem os caçadores de gorilas no Quênia, dizimando populações inteiras da espécie. Por uma certa ótica, o ser humano se sofisticou com o uso das armas de fogo, e passou a fazer o mesmo com outros seres humanos – a imagem que me vem à mente de imediato é a de Ralph Fiennes no papel do nazista Amon Goeth, atirando a esmo em judeus espalhados pelo campo de concentração em A Lista de Schindler. Daí a matar a distâncias ainda mais seguras – o avião que despeja bombas e varre do mundo populações inteiras – foi um pulo. “O horror, o horror”, como diria Brando/Kurtz em Apocalypse Now.

Dado todo esse histórico, por que ainda nos surpreendemos quando alguém desfere 15 tiros num filhote de coala? Afinal, já vimos pessoas desferirem tiros até em filhotes de pessoas. É que talvez permaneça, pelo menos em alguns de nós, um espanto primordial. Um travo de humanismo e desconforto com a injustiça, que parece ter ficado para trás quando a pólvora ganhou o mundo e nos trouxe até esta terra devastada. Esse espanto talvez nos redima um dia, mas é mais provável que o mal se torne de vez uma força da natureza, como um relâmpago ou um vulcão – o que, pensando bem, talvez já esteja acontecendo.

6 comentários:

karla disse...

Sempre acho um absurdo quando amigos meus me contam o que faziam, quando crianças, com com gatos, pássaros, lagartixas, bichos em geral. Faziam barbaridades. Não consigo entender como crianças que tinham essa índole, podem crescer adultos bons. Mas será que são bons mesmo? Fico vendo vários homens após a separação matarem seus filhos ainda pequenos só para não pagar pensão. Que humanidade é essa?? Socorro......

Beijos,

Karla

Paulo Sales disse...

A infância é território de crueldades, Karla, mais até do que a gente imagina. Quando a consciência moral ainda não está formada é até justificável cometer barbaridades. O problema é ver adultos fazendo isso, matando como se coça o saco. Por isso que às vezes tenho vontade de fazer como Silvio Brito: "Pare o mundo que eu quero descer".
bjs

Luciana disse...

Paulo,

As vezes me sinto culpada por sentir mais pena de um cachorro de rua do que de um mendigo. Não consigo entender o porquê disso, mas é mais forte do que eu. Não dá pra acreditar que existam pessoas tão cruéis. Também tô querendo pedir pra descer...

Paulo Sales disse...

Oi, Luciana
Sinto algo parecido, embora também sinta um grande desconforto com a miséria do ser humano, a sua falta de dignidade, de horizonte. É tão doloroso quanto um cachorro sozinho, embora o cachorro seja muito mais vulnerável.
Já a crueldade é algo que está além da nossa compreensão.

Bety disse...

É lamentável que diante de tanta mordenidade e descobertas, o homem ainda destrói tantas vidas!
Não consigo aceitar esse comportamento tão bárbaro!

Paulo Sales disse...

É verdade, Bety. O problema é que a barbárie faz parte da nossa espécie, por mais que eu ou você não nos reconheçamos nela. A história da humanidade é uma história de sangue derramado - seja o de homens ou o de animais.
bjs