terça-feira, 1 de novembro de 2011

"Indignados"




Nos últimos dias, o assunto mais citado na imprensa e nas redes sociais foi o câncer de Lula. Talvez nem pela doença em si, mas sim pelos comentários irados, preconceituosos e consequentemente estapafúrdios que proliferaram como um tumor maligno por vários territórios da tal aldeia global a que chamam de internet. Um dos territórios mais afetados foi a coluna de Gilberto Dimenstein na Folha de S.Paulo. Tanto que ele resolveu escrever um novo texto, dias depois do primeiro, para se manifestar: "Senti um misto de vergonha e enjoo ao receber centenas de comentários de leitores para a minha coluna sobre o câncer de Lula. Fossem apenas algumas dezenas, não me daria o trabalho de comentar. O fato é que foi uma enxurrada de ataques desrespeitosos, desumanos, raivosos, mostrando prazer com a tragédia de um ser humano. Pode sinalizar algo mais profundo."

O mais grave nessa doença virtual - mais até do que os ataques a Lula e ao que ele representa - é a capacidade que uma parcela significativa da população possui de escolher sempre os alvos mais disparatados para a sua indignação. São milhares de pessoas gastando seu tempo para vociferar virtualmente contra um ex-presidente, assim como vociferam (invariavelmente em letras maiúsculas e invariavelmente em português trôpego) contra um participante de reality show, uma prova anulada do Enem ou um juiz que prejudicou seu time. O ódio se materializa em ofensas estúpidas a jornalistas, que agora possuem um canal direto com seus "leitores".

O que mais me intriga nisso tudo é: por que esse ódio indignado nunca se lança com a mesma virulência contra assuntos muito mais graves? Estou me referindo a um fato que considero gravíssimo, e que pelo jeito não sensibilizou as manadas de indignados virtuais: Marcelo Freixo, deputado estadual do Rio de Janeiro pelo PSOL, está deixando o país após sofrer sérias ameaças de grupos de extermínio. Para quem não sabe (eu não sabia), Freixo presidiu a CPI das Milícias na Assembléia Legislativa do Rio, que indiciou mais de 200 policiais e políticos ligados diretamente ao esquema de extorsão, assassinatos e tudo aquilo que eu e mais 12 milhões de pessoas vimos em Tropa de Elite 2. Não por acaso, Freixo foi consultor do filme de José Padilha. Sua partida para lugar incerto é fruto de algo dolorosamente banal: ele não confia em quem tem a obrigação de protegê-lo. Daí ter aceitado um convite da Anistia Internacional para passar um tempo na Europa com a família. Marcelo não é bobo. Sabe o que acontece com quem se levanta contra o poderio das milícias no Rio.

A juíza Patrícia Acioli, que pôs um montão de gente barra pesada na cadeia, foi assassinada há apenas dois meses quando chegava em casa. Patricia não tinha proteção, carro blindado ou qualquer obstáculo à ação dos executores que, agora se sabe, são policiais militares: o tenente Daniel dos Santos Benitez Lopes e os cabos Sérgio Costa Junior e Jefferson de Araújo Miranda. Sim, policiais militares. Algo tão corriqueiro que sequer nos damos conta do quanto é absurdo e inadmissível. Marcelo Freixo e Patrícia Acioli iniciaram uma luta contra um inimigo praticamente invencível. Afinal, policiais foram criados para nos proteger, e sabem como a engrenagem funciona - e quando não deve funcionar. Aliados a políticos e a apresentadores de programas sensacionalistas na tevê, eles se tornam onipresentes, onipotentes e oniscientes.

Com tudo isso posto, onde entra a tal indignação dos brasileiros? É tão inflamada a torcida para que o carcinoma na laringe do ex-presidente ganhe a dimensão de metástase que não há saliva suficiente para ser derramada num hipotético protesto contra os superpoderes de uma bandidagem sem freios. Estulta, arrogante e truculenta, uma horda numericamente expressiva de brasileiros se engaja em causas equivocadas, derramando pelos becos do mundo virtual sua concepção de vida tosca, sua aversão à vida em sociedade, sua sordidez bairrista e demófoba. Estamos nos apequenando como sociedade e como nação, batendo recordes de mortes no trânsito e assistindo com certa conivência as cidades se brutalizarem. Enquanto isso, quem pode fazer a diferença precisa escolher entre o cemitério e o aeroporto, rumo ao exílio. Ou às vezes nem isso, como provam os 21 disparos que fizeram com que a juíza Patrícia só pudesse optar pela primeira alternativa.

10 comentários:

Giovanni Soares disse...

Grande Paulinho. Quanto as manifestações extremadas nas redes sociais à respeito da doença de Lula, lembrei que um amigo disse que os brasileiros fazem piada (inclusive de mau gosto) e tiram sarro de tudo, principalmente das pessoas famosas, as chamadas celebridades. Foi assim com o Senna, Tancredo, Mamonas Assassinas, ACM, Ulisses Guimarães, com as vítimas de acidentes da TAM, etc. Isso não justifica, de jeito nenhum, mas explica de certa forma esse prazer pelo humor negro do brasileiro. É uma sacanagem, é. Precisa ser criticada, precisa. E merece todo o nosso repúdio, merece. Não vejo tanto como ódio, mas como uma rebeldia escrota. Tanto é que essas pessoas não perdem tempo com qualquer figura para esse tipo de atitude. Tem que ser bem famosa e venerada pela grande maioria, para surtir o efeito desejado. Semi-celebridade não vale a pena. E agora, com essa coisa de rede social, que todo mundo gera conteúdo, vira um prato cheio. Enfim, nós, brasileiros, somos bons de critica, de tirar onda, mas atitude que é bom, nada. É uma pena. Mas é a mais pura realidade.

Paulo Sales disse...

Grande Giovanni, que bom tê-lo por aqui.
É verdade, temos um lado rebelde, escroto mesmo, que se manifesta no humor desbragado e muitas vezes politicamente incorreto. Mas o que tenho lido na internet me parece um tom acima, uma coisa mais pesada, covarde. Não só no caso do Lula, mas também em manifestações contra nordestinos por causa do Enem e coisas do tipo. Já faz algum tempo que tenho identificado isso em comentários muitas vezes anônimos. Há um rancor, um discurso racista que não passa pelo humor, eu acho. E é isso que me preocupa. Tirar sarro do Lula faz parte, até porque acho que ele vai sair dessa sem maiores problemas. Mas escrever coisas como "espero que o carcinoma vença" não me soa engraçado.
Grande abraço, meu velho.

Clara Gurgel disse...

Paulo, esse texto do Dimenstein foi no mínimo paradoxal. Se disse arrependido mas não perdeu a oportunidade de dar uma "espinafrada", dizendo que o Lula foi conivente com a corrupção no governo dele. Acho que essa análise tão "subjetiva" não cabia ali, naquele momento. E, depois, convenhamos, esse "algo mais profundo" que ele tanto teme, é muito fomentado pelo veículo para o qual ele trabalha e se submete. O único parágrafo que ele talvez tenha escrito com maestria, e aí eu concordo com ele, foi esse:
"Minha suspeita é que a interatividade democrática da internet é, de um lado, um avanço do jornalismo, e, de outro, uma porta direta para o esgoto do ressentimento e da ignorância."
Quanto ao Marcelo Freixo, realmente lamentável que o poder paralelo se estabeleça dessa maneira. Freixo vem sendo ameaçado já não é de hoje.E agora, com a morte da juíza Patrícia, ficou ainda mais em evidência. Só espero que a Secretaria de Segurança não permita que ele tenha o mesmo fim da juíza, para poder efetivamente começar a agir.Nem que seja sob pressão...

Paulo Sales disse...

Oi, Clara
Discordo quanto ao texto de Dimenstein. Ele não me pareceu arrependido de nada do que escreveu, mas sim chocado com o excesso de ódio dos comentários. Seu texto é correto e coloca em perspectiva a figura de Lula, que foi, ao meu ver também, conivente com a corrupção em seu governo, apesar de tudo que ele fez nesses oito anos (algo que Dimenstein também reconhece). Acho que a exacerbação do confronto ideológico entre lulistas e não-lulistas está provocando um efeito muito ruim: não se analisa mais as matizes, as nuances de Lula como político. Ou ele é um herói sem máculas ou um completo bandido. Houve erros (muitos) em sua gestão e acertos (mais ainda) também, até já escrevi sobre isso aqui no blog há algum tempo.
Mas na verdade o texto queria falar sobre as nossas indignações seletivas, nossa capacidade de vociferar contra coisas menores e deixar de lado o essencial, como é o caso de Marcelo Freixo e Patrícia Acioli.
Bem, acho que desta vez vamos bater de frente, né? Mas a internet está aí para isso mesmo. A gente aprende mais discordando do que achando que tudo é divino maravilhoso.
Um beijo.

Clara Gurgel disse...

Hi,Paulo,na verdade, quis dizer envergonhando e não arrependido. Quanto ao Lula, não sou nenhuma lulista deslumbrada(sou lulista?). Seu governo teve erros e acertos. Não gosto de "comprar essa briga" entre "lulistas e não-lulistas". Nessa questão, não sou nada passional. Bom, te peço até desculpas porque acho que saí mesmo um pouco fora do foco do seu post, com o qual eu concordo plenamente.Tanto que já até compartilhei.Beijo prá ti,tb!

Paulo Sales disse...

Oi, Clara,
Não imaginei mesmo que você fosse uma lulista deslumbrada, não faz o seu tipo (rsrsrs). Essa polarização está fazendo um mal danado ao país.
E não tem nada que pedir desculpas. Seus comentários são sempre muito bem-vindos.
Bjs

Socorro disse...

Acho que com Lula tem a história do preconceito. A elite aceitou Lula porque não tinha outro jeito pra manter ainda por um tempo seu decadente capitalismo, mas nunca engoliu ver o empregadinho nordestino como chefe de Estado. E a classe média, ou uma parte dela, (jornalistas, então,) tá aí pra fazer o trabalho sujo dos patrões. Ainda bem que Dimenstein teve o bom senso de fazer aquele comentário. Viram a entrevista da Lucia Hipolito? Ela só faltou dizer "que bom que este cãncer vai tirar Lula das próximas eleições". Sei de algumas pessoas no facebook que voltaram atrás na campanha boba do SUS influenciadas por comentários dos amigos. Imagine o poder de convencimento de uma comentarista como ela. Enfim, nessa resposta de Nassif a Dimenstein talvez esteja uma boa pista do que tá acontecendo...
http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/selvageria-contra-lula-foi-ensinada-pela-imprensa

Paulo Sales disse...

É claro que o caso de Lula é motivado por preconceito, Socorrinho. Um preconceito babaca, arraigado nas entranhas de uma gente que não quer direitos, apenas privilégios. Mas discordo quando você cita os jornalistas que fazem o trabalho sujo dos patrões. Dimenstein faz um trabalho sujo? Clóvis Rossi faz um trabalho sujo? Criticar o governo Lula é fazer trabalho sujo? Cabe a imprensa se posicionar, seja a favor ou contra Lula, e qualquer opinião é bem-vinda para que se crie o debate. Como falei num comentário acima, acho que a polarização exacerbada está acabando com o debate político no Brasil.

Giovanni Soares disse...

Paulinho, não vi essa declaração "Espero que o carcinoma vença". Concordo com você: não tem nada de engraçado nisso. Realmente, amigo, algumas coisas passam do limite, da coisa minimamente civilizada. Aqui, em SP, por exemplo, tem sido comum agressões a homossexuais na Av. Paulista, inclusive com ações brutais de skiheads. Um negócio chocante. Abraço.

Paulo Sales disse...

É, meu velho, as coisas estão passando dos limites. Essas agressões imbecis aí na Paulista, lugar por onde andei tantas vezes na alta madrugada, me enchem de perplexidade.
Grande abraço.