terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Arquivo - Sinto um gosto amargo


Sinto um gosto amargo


Escrito em 19 de dezembro de 1991


Eu senti que os olhos me doíam como se
Pequenos pedaços de vidros de lâmpada
Fizessem lar neles
Essas vitrines da minha juventude
Onde eternos invernos nublados
Fazem chover solidão em minha consciência
Por que tanta tormenta?
Por que essa dor no peito?
Os belos, os felizes
Eu cansei dessa tristeza
E um animal querido observa a minha decrepitude
Um homem que pede um pouco de carinho
Jogado numa cama e só
Ferido
O problema é não ver o horizonte
É beber muito para poder esquecer de si mesmo
Eu reparei naquela árvore no crepúsculo
Ninguém reparou
Vi, eu vi, sim, eu vi os olhos vermelhos
No reflexo da janela e o vidro embaçado
Tocando a chuva do outro lado com o nariz
Os pedaços de lâmpada me fazendo lacrimejar
O paraíso tão perto
A alma querendo ir
Os velhos só queriam jogar damas e eu
Pedindo para ser anjo
Eu caí na sarjeta às cinco horas da manhã morto de bêbado
Eu não estava bem
Tirei o fio de juventude de uma dezena de putas
E escrevi poemas profanos na areia da praia
Eu destruí a vida de mulheres que me amavam e só
Eu fiquei em posição fetal durante duas horas
Quase morto de tanta solidão
Esperei bem uns nove meses sentado numa rodoviária
Para tentar achar uma índia
Tudo o que eu quero é um pouco de sanidade
Não vou ficar embaixo da grama, embaixo de tudo
A morte sempre nos torna medíocres
Todos seremos medíocres um dia, não adianta
Buscar a genialidade na estrada
Nem nos livros nem nos olhos dos velhos mendigos bebuns
Não adianta buscar nada
Felicidade é uma pedra de gelo
E a velhice é o castigo final e o castigo é a esclerose
Olhos vendados, estamos sempre de olhos vendados
A cegueira é sempre achar que o paraíso está perto
Se nunca conseguimos alcançá-lo
Nos vendemos a nossos próprios pais
Nos vendemos a nosso próprio país
Nações territórios demarcações fronteiras
Invenções tolas
Homens são todos iguais e se acham singulares
Todas aquelas árvores seculares foram mortas por eles
Elas, que são muito mais sábias
Elas, que são sim eternas
Não entendi quando me falaram sobre mentes destruídas
Sobre corpos torturados
Eu ainda não entendo o sofrimento
Há tanta tristeza
Pairando no ar
Tornando o ar pesado
Ainda há muitos gritos de mães atormentando nossos ouvidos
Ainda há uivos de dor flutuando no vento
Minha solidão ataca, lasca
Feito a visão de um fuzilamento
Carrego toda dor sozinho
Pois só tenho a mim mesmo, pois não
Me apoio em soluções invisíveis, impalpáveis
Sinto um gosto amargo como se comesse uva podre
Sinto um cheiro de bosque que já não existe
Um pressentimento como se animais famintos
Viessem ao meu encalço
Toda a minha fé está em mim e não tenho fé
Tenho um impulso colérico, uma fúria de vida
Dois olhos dolorosos, olhos doloridos, olhos horrorosos
Duas feridas iguais abertas e infeccionadas
Infecções intestinais
Buracos ulcerados no estômago e no fígado
Já destruído pela cirrose hepática
Mil cigarros e litros de fumaça por dia
Meu vício é achar que tenho chance de ser feliz
Meu vício é esse narcisismo contraditório
Sempre tentando esconder tolices
Tolices sempre aparecem cedo ou tarde
Feito baratas saindo de esgotos
Tudo o que tenho a dar é um pouco de aflição
Um pouco de desesperança
Doses violentas de niilismo e depressão
Uísques vagabundos jogados fora no vômito
Os piores homens são os que se matam por amor à pátria
Os melhores homens são assassinados pela solidão
Vive-se uns sessenta anos para se acabar numa vala comum
Num terremoto qualquer
Eu repentinamente vejo aviões bombardeiros passarem
Jogam bombas em nossas almas
Punks imbecis quebram bancos 24 horas e se flagelam
E desde quando violência e dor levam a algum lugar?
Há sempre alguém tramando alguma coisa em qualquer canto
Sempre algum idiota querendo vencer na vida
Metrópoles fazem as pessoas enlouquecerem
O tráfego e a buzina
As brigas de bar e os assaltos
Oh, o tempo...
Somos todos fantoches e nossas vitrines estão quebradas
Alguém jogou uma pedra e roubou o brilho dos nossos olhos
Começo a pensar que não temos para onde ir
Que mesmo fugindo em um avião o desnorteio vem junto
Como um tiro persegue um alvo em fuga
E o tiro é na consciência
Quase me joguei um dia de um penhasco e
Imaginei meu corpo fazendo companhia às pedras
Todos nós somos espancados como as pedras pelas ondas
E não podemos beber água por ser salgada
Me sinto como um feto recebendo pancadas
Das mãos da mãe
Gosto de sentir a minha mão apertar um seio
Gosto de pensar em algum dia me entregar ao mar
De morrer enlouquecido de bebida em algum bar de striptease
Ferir a minha imagem jogando um copo no espelho
Um copo de vodka gelo e limão
Um espelho de banheiro
Quantos cacos de vidro ainda restam em meu olho?
Quantas lágrimas?
Quantos olhos me restam?
A queda sempre pode estar próxima
Meu vento é um sopro de solidão soprando no deserto
Eu espero a primavera
Eu espero a sanidade
Eu espero a felicidade
Mesmo que não exista e eu espero que exista
Estranhos melancólicos febris
Esses são os olhos da noite
E esses são meus olhos
Seus olhos, querida, parecem cortes de gilette
Sangrando em meus pulsos...

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