sábado, 4 de abril de 2009

África ao pé do ouvido


É certo que a grande música dos séculos 17 a 19 frutificou na Europa, sobretudo na Áustria, Alemanha e Itália. O século 20 viu o eixo cultural, assim como o econômico e político, se deslocar do velho continente para o Novo Mundo, onde os descendentes de escravos – negros, pobres e em sua maioria analfabetos – deram forma ao jazz e também ao blues e ao soul, provando que estavam à frente do seu tempo e das atrocidades a que foram submetidos. E agora, neste início de século 21, onde germina a grande música do mundo? Cada vez mais me sinto seguro para afirmar que ela está na África. Sim, na África. Aquele continente enorme, lindo e esquecido, onde guerras civis pipocam feito espinhas no rosto de um adolescente. Onde a aids ainda não deixou de ser uma doença fatal, e mata mais do que a varíola nos velhos tempos. Onde uma população esfomeada e sem horizontes espera pela ajuda humanitária que quase nunca vem, enquanto serve de modelo vivo (ou nem tanto) para os fotógrafos adeptos da estética da fome.
Como pode haver música boa num lugar assim, você poderia perguntar. Bem, não sei a resposta. Sei apenas que a música simplesmente prolifera. E sei também que a África absolutamente miserável é, de certo modo, um estereótipo não necessariamente fiel aos fatos. Uma vez entrevistei José Eduardo Agualusa, proeminente escritor angolano (segue abaixo o bate-papo, vale a pena conhecer seus pensamentos e suas experiências), e ele disse que não adianta olhar a África como se fosse um lugar único e estático. “A África são muitos países, e completamente diferentes um do outro. Você tem países prósperos, viáveis, democráticos, como Botsuana, Senegal e Cabo Verde. Mas deles não se fala, porque as notícias são sempre sobre guerra. Nossos problemas têm a ver sobretudo com a não-democratização da África. A democracia está intimamente associada ao desenvolvimento”, teorizou.
Ou seja, nosso olhar ocidental e anglocêntrico se faz de míope quando se depara com a diversidade do continente. Lembro que Agualusa também falou da música africana, da qual é um entusiasta (ele tem até um programa de rádio lá em Angola), e quando eu citei Youssou N’Dour, Cesaria Évora e Miriam Makeba, ele retrucou: “Esses são os consagrados. Os melhores são os desconhecidos”. Ele estava certo. Quando sustento – provavelmente sem nenhuma base sólida, apenas com a avaliação superficial, porém sincera e sem vícios, de um sujeito incapaz de tocar um instrumento – que a grande música está na África, quero dizer que essa música oferece caminhos e soluções inventivos e inusitados que vão muito além dos excessos histriônicos da música pop norte-americana, do marasmo dos antigos ritmos caribenhos e do sem-rumo e vulgaridade dos brasileiros. Uma música impregnada de passado, mas vigorosamente sintonizada com o futuro.
Ao ouvir esses artistas de nomes insólitos, me embrenho num universo de sofisticação, lirismo e espontaneidade que me fascina a cada nova descoberta. Já falei, aqui no blog, sobre o pessoal da rumba congolesa, do disco The Kinshasa-Abjian Sessions. E agora, graças aos sites de compartilhamento, venho conhecendo outros artistas e sonoridades excepcionais. Um deles é o cantor e guitarrista Habib Koité, de Mali. Sua música – orgânica e melodicamente fértil – guarda tamanha sutileza que é impossível não se envolver emocionalmente com ela, apesar do canto incompreensível. Koité não é novo (nasceu em 1958), mas seu trabalho só começou a ganhar o mundo na última década. Outro é Andy Palácio, que, mesmo não sendo do continente (nasceu em Belize), mune-se de uma tessitura etérea para fazer a ponte entre seu berço africano e a influência caribenha, divulgando a cultura da comunidade Garifuna. E ainda tem o pessoal do Cool Crooners of Bulawayo, conjunto vocal precioso. Há muito mais, claro, e eu ainda estou apenas no começo da caminhada. Um atalho confiável para conhecer melhor esses sons são os discos da coleção Putumayo dedicados ao cancioneiro do continente, mesmo se tratando de coletâneas. O resto é pesquisar. A internet é um manancial: você só precisa de paciência, atenção, sensibilidade e um provedor decente para ter a África aos seus pés. Ou, melhor: aos seus ouvidos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Paulinho,

Que bom voltar a aprender contigo. Ponto pra internet. Sou apaixonada pela música do Habib Koité desde que o conheci num show, muitos anos atrás, no TCA. Acabei encontrando um CD dele nas Americanas. Até já dei alguns de presente. Joceval ganhou um. Se ouviu, não sei. Mas concordo contigo. Aliás, fora da política, acho que concordamos em muita coisa. Lembrei de ti quando assisti esta semana, pela quarta ou quinta vez, ao filme sobre Cazuza. O tempo não para. Mesmo. E que bom que não para. Meus dois filhos, com quem aprendo todos os dias, me fizeram conhecer nos últimos tempos dois ótimas músicos africanos: Maira Andrade, do Cabo Verde, uma indicação da minha romãntica Juliana, que parece muito com o pai, mas aprendeu muito comigo http://www.youtube.com/watch?v=lIU0xRah6nA.
E o meu filho mais novo,aquele que gosta de reggae, ficou encantado com Rajery, um músico do Madagascar que ele conheceu no Mercado Cultural, aqui em Salvador, no final do ano. http://www.youtube.com/watch?v=gScLfmf9v6U.

Paulo Sales disse...

Eu também estou aprendendo, Anônima (que, acredito, deve ser Socorrinho, pelo português perfeitamente adaptado às novas normas ortográficas), e valeu a dica desses artistas. A África é coisa fina.
bjs