sábado, 25 de abril de 2009

Minha pequena e acolhedora trincheira


Nos últimos dias acionei minha memória afetiva ao escutar um disco antigo de Cat Stevens no som do carro, enquanto ia e voltava do trabalho. Sobretudo porque aquelas canções cheias de sinceridade e ímpeto juvenil me trazem reminiscências de um período particularmente agradável da minha vida: os últimos tempos em que vivi em São Paulo, num pequeno e aconchegante apartamento de quarto e sala na Bela Vista. Minha filha ainda não era nascida, e lembro que chegava em casa, tomava um banho, me servia um copo de J&B ou Cutty Sark com gelo e chamava minha mulher para ficarmos sentados numa cadeira de balanço no escuro ouvindo Where do the Children Play, Lady D’Arbanville, Father and Son ou qualquer outra música do velho Cat. Então eu acendia um cigarro, tomava um gole e me sentia reconfortado e ligeiramente sonolento, pronto para mais um dia de trabalho na manhã seguinte. Adorava aquele apartamento. Ficar ali de bobeira lendo o Estadão e ouvindo Pixinguinha nas manhãs de domingo. Assistir aos jogos do Flamengo (foi lá que passei a noite mais triste da minha veneração pelo Manto Sagrado, quando perdemos uma final de Copa do Brasil para o Grêmio). Ler um livro na cama (Havana para um infante defunto, O Teatro de Sabbath e Uma Luz em meu Ouvido foram alguns deles). Ou então sair para comer um pastel com caldo de cana no feirão da Ceagesp e depois passear na Paulista. Ah, o prazer de acender um cigarro e olhar as pessoas, fuçar os livros usados vendidos na calçada e tomar um expresso no Café Creme. O olhar retrospectivo faz tudo isso adquirir um tom menos sombrio e mais nostálgico, mas lembro bem que na época apreciava muito esses prazeres frugais, assim como apreciava as noites quase diárias de boemia no Puppy, meu santuário particular, ou uma pizza na Speranza, ou um tutu com torresmo no Consulado Mineiro, ou uma moqueca de camarão no hoje extinto Bargaço do Largo do Arouche. Também sinto falta hoje das noites inteiras regadas a conversas intelectualmente sólidas (apesar do álcool), dos diálogos que me enriqueciam, criando um intercâmbio de idéias fundamental, quer o tema girasse em torno da genialidade de Romário ou da de Nelson Rodrigues. Talvez por isso goste tanto de voltar a essa cidade caótica e rever meus bons amigos e repetir tudo (aliás, quase tudo) que fazia nos tempos de faculdade. É como um ritual, agora sem o cigarro e sem o pequeno apartamento da rua Rui Barbosa, minha pequena e acolhedora trincheira. Às vezes me pergunto como estaria minha vida hoje se tivesse optado por permanecer na cidade. Não tenho a menor idéia. Mas sei que sentiria uma dor danada se não tivesse estado ao lado de meu pai durante os últimos anos dele, e que a saudade de minha mãe doía demais naqueles tempos de auto-exílio. E, por fim, não imagino minha filha vivendo lá, embora a Salvador deste início de século esteja longe de ser um idílio. De qualquer modo, aquela minha São Paulo particular do final dos anos 90 não existe mais, nem sou mais o homem de 26, 27 anos que perambulava por suas ruas, bebia em seus bares e ouvia Cat Stevens no escuro, no aconchego de uma cadeira de balanço.

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