domingo, 4 de janeiro de 2009

Homens em tempos sombrios


O mundo é bárbaro. E ainda bem que existe Luis Fernando Verissimo para nos ajudar a entendê-lo (ou melhor, a entendê-lo cada vez menos, já que não parece haver lógica nessa nossa aventura errática pela Terra). É comovente a sua perplexidade frente a uma realidade cada vez mais refratária à inteligência e aos princípios morais básicos que sustentaram até hoje o que conhecemos por civilização. Em seu novo livro, uma coletânea de brilhantes artigos intitulada justamente O mundo é bárbaro – E o que nós temos a ver com isso, Verissimo nos leva a uma jornada fragmentada pelas desditas do mundo moderno. Ele é capaz de, numa única frase, atingir ao mesmo tempo o músculo da face e o córtex cerebral do leitor. Como se o sorriso cúmplice nos lábios viesse acompanhado invariavelmente de uma pulga atrás da orelha. Suas crônicas seguem uma fórmula bastante eficaz, que começa com uma parábola aparentemente inocente (das teorias de Stephen Hawking à anedota da velhinha contrabandista) para em seguida entrar no que realmente interessa. Mas interessa mesmo? E a quem? O subtítulo do livro faz uma alusão à indiferença atual frente a um mundo sem rédeas. Enquanto as bombas de fragmentação ou as bolsas em queda livre não nos atingem, está tudo bem. Mesmo que pessoas estejam morrendo ou famílias falindo em algum canto do globo por causa delas. Verissimo é um intelectual de esquerda, crítico ferrenho da globalização e da onipresença do capital especulativo sem escrúpulos que destrói economias sólidas, sobretudo as pessoais. Na época do Mensalão do Governo Lula percebia-se nele uma perplexidade impossível de ser camuflada. Como todos nós que havíamos dado nosso voto e nossa confiança irrestrita ao ex-torneiro mecânico, ele também estava perdido. A diferença é que não embarcou no silêncio dos intelectuais, e expôs as vísceras (embora com um certo pudor) do escândalo e dos descaminhos que marcaram o primeiro governo de Lula. Vale a pena ler O mundo é bárbaro como eu li: dividindo a cabeceira entre ele e Era dos extremos, de Eric Hobsbawm. Ambos são homens que vivenciaram em parte (o anglo-egípcio mais, o brasileiro menos) as atrocidades do século 20, e cultivaram ao longo do tempo uma consciência essencialmente humanista. Dessa forma, os textos curtos de Verissimo ganharam para mim um importante substrato nos longos (e sedutores) capítulos de Hobsbawm. Até porque ambos devotam boa parte de seus livros a tentar compreender por que, a partir da Segunda Guerra, a morte de civis se tornou um componente essencial nos grandes conflitos. É a mesma pergunta que, em pleno século 21, eu me faço: por que gente inocente tem que morrer em massa a cada erupção bélica que pipoca a toda hora em toda parte do mundo? Por que o assassinato de crianças, mulheres e homens deixou de ser um “efeito colateral” para se tornar o fundamento de todos os conflitos iniciados desde a era Hitler? Com a palavra, Verissimo: “Hoje a guerra psicológica é o pretexto legitimador para quem usa o terror por qualquer causa, incluindo o novo e curioso conceito de bombardeio humanitário desenvolvido pela Otan. E cada vez que vemos uma das vítimas do terror, como o último cadáver de uma criança judia ou palestina sacrificada naquela guerra especialmente insensata, pensamos de novo nos tempos em que só os soldados morriam nas guerras, e ainda era possível ser um espectador, mesmo distraído como a dona de casa de Waterloo, da história. Ou ser inocente.”

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