segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

A inocuidade do sagrado


“Na cidade de El Fasher, capital de Darfur do Norte, rebeldes de uma das facções do Exército de Libertação do Sudão (SLA, na sigla em inglês) aproveitam a sombra para conversar sentados em cadeiras de plástico ou apoiados em seus Kalashnikov, com os quais dão sua contribuição às atrocidades da guerra. Cinco vezes ao dia, eles estendem seus tapetes e rezam voltados para Meca, enquanto o fuzil automático repousa ao lado.”
Revista Veja, 24/12/2008

O trecho acima, que faz parte da excelente reportagem de Diogo Schelp sobre o genocídio silencioso em Darfur, no Sudão, é sintomático: qual o real sentido das orações feitas cinco vezes ao dia por esses soldados assassinos? O que pretendem alcançar quando se dirigem a Alá nos intervalos das matanças? Perdão? Redenção? Agradecimento pela alta porcentagem de tiros certeiros?
Os rebeldes fanáticos de Darfur representam a face mais dolorosa de um mal que, passado tanto tempo do início da era cristã, permanece íntegro e (cada vez mais) sólido: a influência nociva das religiões – todas elas ou quase, em maior ou menor medida – sobre a maior parte da humanidade. Pior do que fazer o mal conscientemente é fazer o mal acreditando que ele é parte integrante de uma estratégia formulada por Alá ou qualquer outro nome que represente o ser supremo. Claro que nem todas as religiões chegam aos extremos do fundamentalismo islâmico, essa praga que voltou a assolar a civilização numa era em que, eliminado o nazismo, tinha-se a impressão de que estaríamos livres da idiotia coletiva rendendo loas a um líder insano. Não dá para comparar o que a leitura obtusa do Alcorão vem causando ao mundo (particularmente o Oriente Médio e países muçulmanos na África, caso do Sudão, mas também nos países ocidentais ricos) com as mazelas menores provocadas pelo catolicismo e outros credos. Mas é verdade que estes também vêm dando contribuição inestimável ao retrocesso que insiste em se sobrepor a cada avanço. Semana passada o Papa Bento 16 afirmou que o mundo precisa se livrar do homossexualismo. O mundo talvez precise se livrar da influência de pessoas como ele. É por declarações como essas – e também pela condenação ao uso de preservativos para controlar a aids e outras doenças sexualmente transmissíveis – que o catolicismo vem perdendo terreno para as seitas neopentecostais, mais tolerantes, embora no geral mais corruptas. E o que dizer das Testemunhas de Jeová, que proíbem a transfusão de sangue e o aborto de fetos anencéfalos, mesmo que isso custe a vida do fiel? É uma forma velada de pena de morte – e o pior: de um inocente. Mesmo pondo na balança os valores morais propagados pelas diversas religiões, qual o efeito prático delas para a humanidade? Dostoievski disse que se Deus não existe, tudo é permitido. Mas tudo não está sendo permitido, de uma forma ou de outra? O genocídio no Sudão é só mais um exemplo da morte sistemática de civis ao longo do século 20 e começo do 21.
A pergunta que fica de tudo isso é: se Deus existe, qual é mesmo o seu objetivo ou que função desempenha na ordem das coisas? Seria uma figura decorativa, uma rainha da Inglaterra na monarquia celestial? Acreditar em Deus é achar que somos algo mais do que a insignificância absoluta a que estamos relegados. Não somos. O grande papel das religiões – e nisso elas ainda são imbatíveis e necessárias – é tentar mitigar o malogro que é a vida humana. Toda a imensidão da Terra é um limite exíguo, um quase nada. Estamos todos condenados a não ultrapassar o limite de nossas vidas, o limite, não geográfico, se é que dá para entender. O limite biológico, as três letrinhas, F, I, M.

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