segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

O chamado da estrada


Uma preciosidade literária está chegando ao Brasil. Estou me referindo ao novo (ou velho?) On the road, a bíblia estradeira de Jack Kerouac, que acaba de ser lançado pela L&PM do jeito que veio ao mundo (ou quase, já que o original é um rolo contínuo de 36 metros escrito em três semanas a base de mescalina e otras cositas). Sem os cortes e a copidescagem que mutilaram em parte o furor da sua escrita, On the road – O manuscrito original não é apenas um documento sagrado. É um convite para retornar (ou se debruçar pela primeira vez) ao universo do mais talentoso integrante da Geração Beat (movimento que convulsionou as letras e o comportamento juvenil da América nos anos 50) e um dos mais representativos da literatura norte-americana da segunda metade do século passado.

Como já disse em outro texto aqui no blog, Kerouac foi minha maior influência literária e comportamental na juventude, embora hoje grande parte do seu discurso não faça mais tanto sentido ou me cale fundo como antes. Mas sua importância ainda é avassaladora para mim. E também para milhares de pessoas nascidas nos últimos 50 anos. Publicado em 1957, On the road significou o grito primevo de uma nova geração literária, surgida em meio ao vazio do pós-guerra, e virou um sucesso imediato, alçando o tímido autor à condição de celebridade. Todos queriam ler ou imitar sua prosa espontânea, recheada de fluxos de consciência que se assemelhavam a fraseados do bebop, a intrincada subversão do idioma jazzístico protagonizada por Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Todos queriam viajar de carona pela vastidão do território americano como faziam Sal Paradise (alter ego de Kerouac) e Dean Moriarty (pseudônimo do genial vagabundo Neal Cassady).

Involuntariamente, Jack se tornou um modelo de comportamento a ser seguido por adolescentes rebeldes. Logo ele, que queria ser reconhecido como um grande romancista, da mesma linhagem de Wolfe e Melville, e que num trecho do seu diário implorava a Deus: "Atinja-me, e vou soar como um sino". É uma imagem muito distante da que a posteridade guardou dele: a do escritor impetuoso, que borrifou vida por todos os poros e lançou-se na estrada para sorver experiências únicas, legando ao mundo obras lendárias e impregnadas de reminiscências pessoais (merecem registro Big Sur, Os subterrâneos, Viajante solitário e Os vagabundos do Dharma). Bem, se a imagem não chega a ser equivocada, é de certa forma reducionista: Kerouac não foi um precursor do movimento hippie ou um entusiasta das drogas e do amor sem fronteiras, ao contrário de Allen Ginsberg e William Burroughs, os outros dois vértices do movimento beat, que se entrosaram bem com a alegoria flower-power. Ele foi na verdade um conservador, admirador da obra de Jack London e Walt Whitman, que se recolheu em casa para morrer lentamente, consumindo vinhos baratos e escrevendo poemas inspirados na tradição oriental. Sua ascendência literária é a da época da depressão dos anos 30, com seus vagabundos sem norte viajando pelo país em busca de empregos inexistentes.

Quem quiser conhecer melhor o velho Jack pode se aventurar para além do On the road (original ou editado). Tanto a alentada biografia escrita por Ann Charters, Kerouac (mais do que seus romances, foi o livro que mais me influenciou), quanto os Diários de Jack Kerouac são essenciais para se compreender por que o escritor não conseguiu deglutir a própria imagem de ícone rebelde, e acabou digerido por ela. Morto em 1969, vítima de hemorragia abdominal, aos 47 anos, ele jamais se sentiu à vontade na condição de artífice da geração beat. Sua obra era marcada por um otimismo essencialmente cristão em relação à humanidade. A maioria dos leitores que se debruçaram em massa nas páginas de On the road não percebeu que, com suas aventuras mundanas, Kerouac queria atingir o sagrado.

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